Quando é que o ocidente tirará, finalmente, as lições da história?

Conversa sobre o Médio Oriente

Lamento os anos desperdiçados durante os quais o “Ocidente perdeu o Médio Oriente”, mas penso que talvez tenha chegado o tempo de deixar isto tudo para trás. Nesta época moderna da comunicação horizontal, devemos dialogar e interagir mais uns com os outros. Ainda é possível construirmos um mundo melhor

Amir Nour [[1]] : O seu panfleto da Universidade de Georgetown intitulado “Como o Ocidente perdeu o Médio Oriente” tornou-se parte essencial de um livro [[2]], que foi bem acolhido na Argélia e tem vindo a suscitar um interesse crescente noutras partes do mundo. Este interesse prende-se, muito provavelmente, com os acontecimentos trágicos que actualmente decorrem no Médio Oriente, como também com as críticas “inabituais” emitidas por um político ocidental sobre a política estrangeira do Ocidente em geral relativa ao Médio Oriente. O que o levou a adoptar a posição que expressou em Washington D.C. em outubro de 2013?

Lord Lothian [[3]] : Passei grande parte dos últimos quinze anos mergulhado na política do Médio Oriente e do Magrebe, bem como de toda a região circundante. O meu interesse agudizou-se com o número de conflitos reais, potenciais e emergentes que encontrei na região, a começar pelo óbvio conflito israelo-palestiniano, mas também as divisões internas no Líbano, a clivagem sectária no Iraque, o conflito episódico mais alargado entre sunitas e xiitas; e, naturalmente, com as implicações que daí decorrem ao nível da segurança, para o Ocidente, evidenciadas de forma espectacular no dia 11 de Setembro de 2001. Os acontecimentos actuais confirmam os motivos da minha inquietação e reforçam a minha preocupação crescente quanto ao facto de ninguém, entre nós, parecer tirar lições dos acontecimentos passados e de continuarmos a cometer erros evitáveis e susceptíveis de agravarem os nossos erros precedentes. Ao dar a minha conferência na Universidade de Georgetown, o meu objectivo inicial era não só demonstrar até que ponto o Ocidente errou no Médio Oriente, mas também a forma como deixámos passar uma ocasião histórica para construir uma comunidade de interesses entre o Ocidente e os povos árabes numa altura em que o Império Otomano se estava a desintegrar, e a forma como continuamos a delapidar o pouco que resta dessa oportunidade. Embora tardiamente, creio na necessidade de sermos honestos quanto ao nosso passado, na esperança de que aqueles que vierem depois saibam evitar os mesmos erros e possam, apesar de tudo, construir no nosso mundo moderno integrado uma nova relação entre o Ocidente e o Médio Oriente alargado, incluindo o Magrebe (MENA). Perante os desenvolvimentos recentes, torna-se imperioso estabelecer uma comunidade de interesses e reforçar a cooperação mútua, cuja necessidade se faz sentir hoje com maior acuidade do que no passado. Seria uma tragédia para todos nós ignorarmos isso.

AN: Considerando a abordagem irredutível da região que prevalece no Ocidente, tanto entre os políticos – conforme ilustrado pelo discurso recente do seu compatriota Tony Blair em Bloomberg, sobre o tema “Os motivos pelos quais o Médio Oriente é importante” [[4]] – como entre as elites intelectuais, não seria justificado etiquetá-lo de “Robinson Crusoe” da política ocidental com pouca, ou nenhuma, influência sobre os centros de decisão nos Estados Unidos e na Europa?

LL: A minha opinião pessoal de Tony Blair, que tenho vindo a expressar há anos, é que ele nunca possuíu um conhecimento sólido dos factos e sempre se mostrou mais preocupado com o efeito produzido pelas suas declarações do que com a realidade que era suposto enfrentar. Decorre daí a sua incapacidade de compreender que a sua posição fortemente pró-israelita (como a de George W. Bush) durante a guerra de julho de 2006 no Líbano, enquanto Beirute, onde me encontrava, se destruía, poderia produzir efeitos prejudiciais a nível da percepção que os Árabes poderiam ter da sua pessoa quando foi nomeado emissário da paz do Quarteto para o Próximo Oriente. Toda a sua carreira – com excepção da Irlanda do Norte, relativamente à qual devo saudar o papel importante que desempenhou na conclusão do Acordo de Sexta-Feira Santa – se baseou naquilo que mais parece uma cegueira da qual a justificação da invasão do Iraque não é o menor dos exemplos. Sou particularmente sensível a esta questão na medida em que, na altura, Tony Blair me garantira pessoalmente no Parlamento que a sua acção no Iraque não estava relacionada com um objectivo de mudança de regime pela força (o que, no âmbito do direito internacional, era ilegal), mas com a existência de provas sólidas quanto à posse, naquele país, de armas de destruição em massa. Foi unicamente nesta base que pedi, então, ao meu partido para apoiar Tony Blair, antes de compreender que havia sido induzido em erro. Por conseguinte, avalio cuidadosamente tudo aquilo que ele diz a propósito do Médio Oriente bem como a maior parte das justificações que adiantou sobre os acontecimentos subsequentes. Devo, também, questionar-me sobre aquilo que concretizou na sua qualidade de emissário do Quarteto para o Médio Oriente. A resposta é: “não muito”. Quanto à etiqueta de “Robinson Crusoe”, não sei julgar o impacto que podem ter as minhas ideias e conferências. O que não significa que, no mundo interconectado de hoje, elas não mereçam ser pensadas e expostas. Seria com certeza mais cómodo manter o silêncio sobre muitas destas questões; o que não significa que esteja certo agirmos desta forma, pois semelhante atitude não é de todo corajosa. Uma voz solitária poderá não ouvir-se logo, mas talvez se revele útil com o tempo.

AN: O que responde aos críticos que consideram que a sua posição “corajosa” parte da perspectiva da “realpolitik”; por outras palavras, que tanto no tocante ao título escolhido em que deplora a “perda” do Médio Oriente, como à insistência nas “percepções” em detrimento das “realidades”, até às observações finais em que destaca o desejo de “recuperar” um dia a “região perdida”, o seu panfleto limita-se a reproduzir os preconceitos ocidentais relativamente aos assuntos do Médio Oriente?

 LL: O cinismo e o cepticismo são as armas tradicionais e fáceis dos críticos. Volvidos quarenta anos de experiência na arena política, não me incomodam de todo. As críticas enumeradas provêm da incompreensão das nuances que, em contrapartida, foram entendidas pelo meu público na Universidade de Georgetown, cuja percepção histórica de como ganhar amigos e influenciar as pessoas é conhecida. Precisei de encontrar um título susceptível de “captar” a atenção dos americanos; foi o que fiz. Ao utilizar o termo “recuperar”, faço referência aos corações, aos espíritos e à confiança que tínhamos, sem dúvida, conquistado em 1916, mas que dilapidámos consideravelmente com as nossas acções ulteriores. É de esperar que não seja demasiado tarde para começar a recuperá-los. O que se deve dizer não é tanto que o Ocidente perdeu o Médio Oriente, mas que não o deveria ter perdido. “Incapacidade de ganhar” poderia ser uma descrição mais precisa daquilo que se passou, mas esta qualificação não teria permitido captar a atenção da forma como aconteceu com o título que escolhi. Pretender, como fazem os críticos, que a minha conferência apenas repete preconceitos ocidentais relativamente aos assuntos do Médio Oriente espelha estranhamente a censura feita por certos críticos ocidentais, que consideram que fui particularmente injusto para com o Ocidente. Na verdade, não me desagrada muito encontrar-me nesta situação, em que sou criticado por ambas as partes ao mesmo tempo.

AN: Parafraseando uma citação célebre do vosso ilustre compatriota Lord Palmerston [[5]], as relações internacionais baseiam-se essencialmente na defesa dos interesses nacionais. Assim sendo, não acha que o Ocidente se preocupa apenas com os seus próprios interesses, que ele se alia com quem lhe garanta a predominância dos mesmos, e que, para o efeito, pouco lhe importa que o seu “parceiro” seja sunita ou xiita?

 LL: É verdade que as relações internacionais se baseiam tradicionalmente na busca dos interesses nacionais, mas é comumente admitido ser um erro pensar que isto é sinónimo de satisfação de interesses egoístas ou simplemente materiais. O erro que o Ocidente cometeu na região durante o século passado explica-se, em parte, pelo facto de ter satisfeito os seus interesses materiais, sacrificando amizades inestimáveis. Mantenho que tal não funcionou e que os interesses nacionais acabaram por não ficar servidos. Considero, contudo, que não é nem nunca deverá ser do interesse do Ocidente tomar novamente partido na antiga clivagem religiosa entre sunitas e xiitas. Esta é a razão pela qual não desejaria que nos envolvessemos neste conflito, que hoje tornou a surgir.

AN: Critica o uso, por parte do Ocidente, de uma terminologia infeliz como, por exemplo, a “guerra contra o terror”, “choque e medo”, “danos colaterais”. Ora, segundo algumas pessoas, parece ser o primeiro a cair nesta armadilha dos excessos de linguagem quando utiliza expressões como “islamismo”, “jihadismo” – aliás frequentemente associados ao “terrorismo” – e “rua árabe”. Qual é a sua opinião acerca disto?

LL: Sempre critiquei a utilização da expressão “guerra contra o terror”. As guerras são travadas entre exércitos e protagonistas. A reacção ao 11 de Setembro resultou na perseguição dos indivíduos que perpetraram um crime odioso cujas vítimas não eram inimigos, mas pessoas inocentes de nacionalidades e confissões religiosas diferentes. Descrever a perseguição desses criminosos maléficos como sendo uma guerra conferiu-lhes um estatuto e uma credibilidade aos quais aspiravam certamente, mas que não mereciam com certeza. O terrorismo é o uso do terror resultante de um acto violento para satisfazer fins políticos. É uma forma de chantagem. Não é uma guerra e designá-lo assim deu-lhe um prestígio que, por sua vez, permitiu a sua radicalização e o recrutamento de jovens inocentes para servir uma causa diabólica. Critiquei a expressão “choque e medo”, porque a considero abusivamente propagandística e concebida para meter medo. Além disso, faz parte de uma retórica alienante e inútil. E condeno a expressão “danos colaterais”, porque se trata de uma tentativa adocicada destinada a ocultar a verdade de pessoas inocentes que são apanhadas debaixo de fogo cruzado e que são gravemente feridas ou mortas. Este é, precisamente, o caso quando se trata do uso dos drones de guerra. A expressão é essencialmente usada para enganar. Devo acrescentar que fiquei surpreendido por ver o conceito de “rua árabe” incluído na terminologia criticada. Trata-se, na realidade, de uma expressão proposta há muito tempo por intelectuais árabes a fim de distinguir o Árabe comum – que na Grã Bretanha designaríamos por homem da rua – dos dirigentes susceptíveis de serem motivados por ambições mais pessoais.

AN: Tanto denuncia a política dos « dois pesos, duas medidas » como outras incoerências políticas praticadas pelo Ocidente em matéria de democracia, de direitos humanos e de primazia do direito. Mas não cairá na mesma armadilha quando cauciona a “democracia obstinada” em Israel – qualificada de Apartheid pelo antigo Presidente americano Jimmy Carter [[6]] – sem ter em conta a dita “Primavera árabe”, que reduz a uma “aventura” (na Líbia) e a uma “deriva jihadista” (na Síria), e sem mesmo mencionar a experiência democrática tunisina? Esta última observação parece particularmente significativa, uma vez que é co-presidente da “Conferência de Hammamet” do British Council [[7]].

LL: A crítica que faço à « Primavera árabe” não incide tanto sobre o seu significado conceptual, mas antes sobre o resultado alcançado e a esperança precipitada que o Ocidente investiu na mesma, sem previamente ter dado provas da mínima diligência razoável nesse sentido. A Tunísia conseguiu seguramente emergir, não sem dificuldades, é verdade; e continua a fazer progressos constantes. Inicialmente, o Ocidente aplaudiu o fenómeno porque via nele a emergência, na região, da democracia liberal. No Egipto? Na Líbia? Na Síria ? Penso que infelizmente os factos são hoje suficientemente eloquentes e não precisam de mim como advogado.

AN: O livro adverte, correctamente, contra os perigos da desintegração territorial e dos conflitos sectários no seio do mundo muçulmano. Considerando a actual divisão, de facto, do Iraque, a sineta de alarme tem tocado um pouco em toda a região. Qual é, para si, a melhor maneira de enfrentar eficazmente estas ameaças iminentes?

 L.L: A situação na Síria e no Iraque é de tal maneira movediça e indecisa que me abstive de comentários substanciais, limitando-me a afirmar que o Ocidente cometeria um erro caso se comprometesse militarmente num ou noutro dos dois países supra citados, uma vez que tal intervenção provocaria, uma vez mais, o agravamento do problema em vez de contribuir para a sua solução. O EIIL [[8]] tornou-se uma preocupação para o Ocidente, devido à sua capacidade de recrutar muçulmanos estabelecidos nos países ocidentais, advindo daí a possibilidade de extensão do risco de segurança para os mesmos. O problema do EIIL é, em larga medida, um problema regional, que deve ser resolvido na e pela região. Qualquer intervenção ocidental seria contraproducente.

AN: Após o sucesso da sua conferência de Georgetown, planeia escrever, no futuro, uma espécie de continuação da mesma?

 LL: Acabo efectivamente de fazer uma conferência mais longa em Washington D.C., intitulada “Quando aprenderemos verdadeiramente: o fim das intervenções militares?”. O texto desta conferência pode ser descarregado a partir do site web do Global Strategy Forum [[9]].

AN: Uma palavra final dirigida aos públicos argelino e internacional?

 LL: Lamento os anos desperdiçados durante os quais o « Ocidente perdeu o Médio Oriente”, mas penso que talvez tenha chegado o tempo de deixar isto tudo para trás. Nesta era moderna da comunicação horizontal, devemos dialogar e interagir uns com os outros. Ainda podemos construir um mundo melhor.

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Artigo em inglês :

When Will the West Ever Learn from History? 18 de Novembro de 2017

 

 

Notas

[1] Investigador argelino em relações internacionais, autor, nomeadamente do livro « O Oriente e o Ocidente no contexto de um novo Sykes-Picot », Editions Alem El Afkar, abril de 2014. É um fervoroso defensor do actual e vital “diálogo das civilizações”, cuja alternativa, no mundo cada vez mais globalizado e polarizado de hoje, seria um “conflito de civilizações” catastrófico.

[2] Descarregamento gratuito em formato PDF :

http://www.mezghana.net/amir-nour.pdf (version française)

 http://www.mezghana.net/Sykes-Picot.jadeed-REAL.LAST.pdf (version arabe).

[3] Lord Lothian (anteriormente Michael Ancram) é um político, membro do partido conservador britânico. Nasceu em Londres, em 1945. Foi eleito no Parlamento britânico em 1974, onde foi deputado conservador até se reformar na eleição geral de maio de 2010. Foi depois nomeado par vitalício na Câmara dos Lordes. Entre 2001 e 2005, ocupou os postos de presidente do Partido Conservador, Líder adjunto, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Secretário de Estado da Defesa no gabinete Fantasma (oposição). É o primeiro Presidente do Fórum de Estratégia Global (um fórum político independente e apartidário, dedicado à promoção de ideias novas e a um debate activo sobre os negócios estrangeiros, a defesa e a segurança internacional), que fundou em maio de 2006.

[4] http://blogs.spectator.co.uk/coffeehouse/2014/04/full-text-tony-blairs-speech-on-why-the-middle-east-matters/

[5] Henry John Temple Palmerston: “Não temos aliados eternos e não temos inimigos perpétuos. Os nossos interesses são eternos e perpétuos e é nosso dever prossegui-los” (observações feitas na Câmara dos Comuns no dia 1 de Março de 1848).

[6] Jimmy Carter, Palestine: Peace not Apartheid, Editions Simon and Schuster, 2006.

[7] http://www.britishcouncil.ly/en/programmes/society/hammamet-conference

[8] O Estado Islâmico no Iraque e no Levante, hoje chamado Estado Islâmico (IS).

[9] http://www.globalstrategyforum.org/wp-content/uploads/Lord-Lothian-EI-lecture-2June2014.pdf

 


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Articles by: Lord Lothian and Amir Nour

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