Print

A busca perdida do Übermensch: do Humanismo renascentista ao Pós-Humanismo da Silicon Valley
By Amir Nour
Global Research, May 03, 2019

Url of this article:
https://www.globalresearch.ca/a-busca-perdida-do-ubermensch-do-humanismo-renascentista-ao-pos-humanismo-da-silicon-valley/5676448

«Ciência sem consciência é a ruína da alma» (François Rabelais)

Ultimamente, a revista semanal política e económica de renome mundial The Economist cativou a atenção dos media internacionais. Com razão. 

No fim de cada ano, a revista publica há décadas uma edição especial, ansiosamente aguardada, com o prognóstico das grandes tendências políticas, económicas e sociais do ano vindouro. Contrariamente ao habitual, o número de Dezembro de 2018, intitulado The World in 2019 (O Mundo em 2019), demarcou-se com uma característica única e interessante: a publicação de duas capas sucessivas e enigmáticas. No espaço de alguns dias, a fotografia da capa da 33ª edição da revista – parcialmente detida pela família Rothschild e conhecida porta-voz da elite mundial e da sua agenda (2) -passou do preto integral à quase magia negra! 

E uma vez que a página oficial da revista não permite elucidar o mistério das duas capas – especialmente a da 2ª versão, que apresenta um vasto leque de imagens e de símbolos crípticos –o leitor depara-se com a necessidade desconfortável de recorrer a leituras esotéricas, ocultas e maçónicas. Felizmente, um artigo elucidativo (3) do blog The Vigilant Citizen – cujo lema, “Os sinais e os símbolos governam o mundo, não as palavras nem as leis”, é atribuído a Confúcio -fornece uma descrição esclarecedora daqueles símbolos, maioritariamente apocalípticos e illuminati. 

No centro da página ergue-se o ‘Homem de Vitrúvio’, uma das obras de arte mais célebres de Leonardo da Vinci, além da Gioconda. Em 2019, prevê-se, precisamente, comemorar o 500º aniversário da morte deste génio misterioso do Renascimento, com pompa e circunstância, em muitos países ocidentais.

Analisando a característica principal da capa do The Economist, o blog explica que o ‘Homem de Vitrúvio’ “moderno” tem “óculos de visão nocturna ou até um capacete de realidade virtual […]. Nas suas mãos, segura uma folha de canábis, uma bola de basquetebol e um smartphone. Poderia argumentar-se que empresas farmacêuticas, da big tech e do divertimento utilizam estes objectos para distrair e pacificar o homem moderno. O ‘Homem Vitruviano’ tem também duas tatuagens. No seu antebraço, ostenta uma dupla hélice, símbolo que representa o ADN e constitui uma referência provável à pesquisa intensa desenvolvida pelo sector privado em matéria de modificação do ADN. Terá o ADN do ‘Homem de Vitrúvio’ sido alterado?”

O artigo termina com observações chave que levantam duas questões cruciais: “O ‘Homem Vitruviano’ moderno aparece globalmente como um ser cego, fraco, distraído e reprimido. O círculo que o envolve e que outrora simbolizava o mundo espiritual agora representa a Terra.  Terá o ‘Homem de Vitrúvio’ perdido a sua alma? Será que lhe interessem apenas as realidades profanas e materiais?”

Vale a pena sublinhar que, para o seu desenho (realizado cerca de 1490), Leonardo da Vinci se inspirou profusamente nas obras de Marcus Vitruvius Pollo, célebre arquitecto romano, engenheiro civil e militar e autor. No seu tratado (4), que foi traduzido do latim com o título Os dez Livros sobre a Arquitectura, Vitrúvio demonstrou que o corpo humano “ideal” encaixava perfeitamente num círculo e num quadrado –dois motivos geométricos fundamentais da ordem cósmica– ilustrando deste modo a sua convicção de que existe uma ligação entre as formas geométricas perfeitas e o corpo perfeito. Mais significativamente ainda, Vitrúvio era considerado um dos “Grandes Mestres” e uma figura central –juntamente com o rei Salomão de Israel, o rei Hiram de Tir e Hiram Abif, três figuras bíblicas estreitamente associadas à construção do Templo do rei Salomão– da alegoria ligada à passagem para o Terceiro Grau na Maçonaria (5), cujo emblemático logo associa dois instrumentos utilizados na arquitectura: um esquadro e um compasso reunidos, aos quais é frequentemente associada a letra “G”, no centro.

Na simbologia maçónica (6), o compasso representa a ferramenta que traça um círculo; sem princípio nem fim, o círculo simboliza a alma (o espírito ou a eternidade). O esquadro, por sua vez, permite desenhar um quadrado, símbolo antigo que representa o corpo (físico e temporário) e encarna o mundo material, com os seus 4 pontos cardeais, as 4 estações, os 4 elementos e os 4 estados da matéria. Juntos, representam aquele que é supostamente o objectivo final da maçonaria: criar o “homem perfeito” através da quadratura do círculo –ou, por outras palavras, através da harmonização dos mundos opostos, físico e espiritual– e atingir, assim, o estado divino! Não é, por conseguinte, de estranhar que a maçonaria esteja aberta aos “homens de todas as religiões, mas que a religião não possa ser discutida nas reuniões maçónicas”. (7)

Não será o ‘Homem de Vitrúvio’ moderno do The Economist o mesmo homem imaginário que o ‘Übermensch’ de Friedrich Nietzsche, esse ‘Super-homem’ que nem Zaratustra nem o discípulo do filósofo alemão encontraram e que acabaria por conduzir este último à loucura e à morte? (8) E não estaremos perante a mesma busca louca, senão suicidária, actualmente prosseguida –de maneira mais obstinada e com conhecimentos científicos infinitamente mais vastos e meios tecnológicos cada vez mais poderosos– em muitos laboratórios das várias ‘Silicon Valleys’ do mundo “desenvolvido”? 

No seu livro particularmente assustador –“altamente recomendado” por Bill Gates– o filósofo sueco e director fundador do Future of Humanity Institute da Universidade de Oxford, Nick Bostrum (9), sublinha que se um dia construirmos cérebros de máquinas que ultrapassem o cérebro humano em inteligência geral, esta nova superinteligência poderá tornar-se muito poderosa. E “tal como o destino dos gorilas hoje depende mais de nós, humanos, do que dos próprios gorilas, o destino da nossa espécie passará a depender das acções da superinteligência artificial”. Bostrum e muitos outros transhumanistas encaram o transhumanismo como uma extensão do humanismo -do qual deriva, em parte- e desejam seguir caminhos de vida que, cedo ou tarde, exigirão que nos transformemos em pessoas pós-humanas. Eles aspiram a “atingir picos intelectuais tão altos e distantes do génio humano comum quanto os humanos distam de outros primatas; a ser resistentes às doenças e impermeáveis ao envelhecimento; a ter uma juventude e um vigor ilimitados; a exercer um controlo sobre os seus próprios desejos, humores e estados mentais; a ser capazes de evitar sentirem-se cansados, odiosos e irritados com coisas fúteis; a ter uma capacidade acrescida de prazer, de amor, de apreciação artística e de serenidade; a fazer a experiência de novos estados de consciência aos quais o cérebro humano comum não consegue aceder.” (10)

Neste mundo maravilhoso e tecno-geek, inteira e exclusivamente dedicado ao lazer individual, às pulsões sensuais e à rêverie, os pós-humanos tanto “poderão vir a ser inteligências artificiais completamente sintéticas, como uploads melhorados ou o resultado de numerosos acrescentos mais pequenos, mas cumulativamente mais profundos, introduzidos no homem biológico. Esta última alternativa exigiria provavelmente uma nova concepção do organismo humano baseado na utilização de nanotecnologia avançada ou o seu aperfeiçoamento radical mediante o uso de uma combinação de tecnologias como a engenharia genética, a psicofarmacologia, as terapias contra o envelhecimento, as interfaces neuronais, as ferramentas avançadas de gestão da informação, o desempenho da memória, os medicamentos, os computadores portáteis e as técnicas cognitivas”. (11) Contudo, as mudanças necessárias para nos transformarmos em pós-humanos são consideradas demasiado profundas para poderem ser conseguidas modificando apenas alguns aspectos da teoria psicológica ou do nosso modo de pensar sobre nós próprios. É por isso que são necessárias modificações tecnológicas radicais do nosso cérebro e do nosso corpo. 

Os transhumanistas estão, obviamente, perfeitamente conscientes que as transições tecnológicas vindouras constituem, sem dúvida, o desafio mais importante com que a humanidade se defrontará. Eles até admitem que toda a vida inteligente futura na Terra poderá depender do modo como forem geridas estas transições. Se fizermos as coisas como deve ser, dizem, “poderá abrir-se um futuro pós-humano maravilhoso com possibilidades ilimitadas de crescimento e de florescimento”. Mas previnem que, caso giramos mal estas transições, “a vida inteligente poderá extinguir-se”. Bostrom acredita que poderemos, em princípio, construir uma espécie de superinteligência que proteja os valores humanos. Mas, na prática, acrescenta, o problema do controlo –saber como controlar a superinteligência– parece bem difícil dado termos, aparentemente, uma única oportunidade. Seja como for, Bostrum avisa que caso venha a existir uma superinteligência “hostil”, esta nos impedirá de a substituir ou de modificar as suas preferências. Por conseguinte, “o nosso destino estará, então, selado”! (12) 

A todos aqueles que, à partida, preferem ignorar “uma tomada de controlo artificial” considerando-a pura ficção científica, os transhumanistas respondem ser provável que ela se produza no decurso deste século. Para nos convencer de que o seu ponto de vista e as previsões estão correctas não perdem uma única ocasião para exibir os dados disponibilizados por Derek Price. (13) Segundo estes, os indicadores com que são avaliadas a ciência e a tecnologia apresentam números que, desde o final do século XIX, têm duplicado de quinze em quinze anos. Extrapolando esta taxa de progresso exponencial, e salvo um reverso brutal das tendências actuais ou uma desaceleração inesperada, os transhumanistas prevêem mudanças espectaculares num futuro relativamente próximo e já não hesitam em proclamar Urbi et Orbi o advento tão esperado do Prometeu moderno! 

Na verdade, a contagem decrescente – sinónimo de ponto de não retorno –em direcção ao Frankenstein de Mary Shelley já está em curso. O processo começou na Suécia natal de Bostrum, onde a empresa de tecnologia BioHax International já “microchipou” muitos dos seus empregados. (14) O futuro também já chegou aos empregados da sociedade de tecnologia Three Square Market (32M), sediada no Wisconsin. O pequeno chip do tamanho de um grão de arroz –igual àquele que é utilizado nos cartões de crédito ou no telefone portátil– é inserido entre o polegar e o índex. Utilizando a tecnologia de identificação por frequência radio (RIFD), permite aos empregados fazer funcionar as fotocopiadoras, abrir portas, conectar-se a computadores e mais, mediante um simples gesto da mão e sem que seja necessário utilizar o clássico cartão de acesso. (15)

Mas, como diz o provérbio, o “melhor” ainda está para vir, em duas frentes. 

Primeiro, ao nível das empresas. Existe uma concorrência feroz entre as várias ‘Silicon Valleys’ do mundo que é, essencialmente, alimentada pela imaginação desenfreada, pela avidez material e pela vontade de poder de certos dirigentes como Marc Zuckerberg e Elon Musk. (16) Nos Estados-Unidos, que são considerados o leader mundial nos campos da inteligência artificial (IA) e da aprendizagem automática (Machine Learning), os engenheiros e os neurocientistas trabalham silenciosamente, há mais de duas décadas, na construção de uma tecnologia revolucionária chamada BrainGate que permite conectar, sem fios, a mente humana aos computadores, mediante chips inseridos no cérebro humano. Estes cientistas estão actualmente a desenhar um mapa numérico do cérebro humano. E estão a experimentar e a modificar consideravelmente o comportamento humano e as funções cerebrais. (17)

Segundo, ao nível mundial, estão a ser feitos esforços incessantes e investidos recursos financeiros consideráveis na corrida pelo leadership mundial da IA, com especial enfoque na área militar, nomeadamente através do desenvolvimento de sistemas de armas autónomas letais. Este aspecto é de tal maneira grave e complexo que levou as Nações Unidas a iniciar um debate sobre a eventual elaboração de um tratado que proíba estas armas aterradoras. (18) O Presidente russo Vladimir Putin declarou sem rodeios que “a Inteligência Artificial é o futuro, não só da Rússia, mas da humanidade. Ela representa oportunidades colossais, mas também ameaças difíceis de prever. Quem for leader nesta área, será o dono do mundo.” (19) Reagindo às observações de Putin, Elon Musk declarou que a competição pela supremacia, a nível nacional, pela supremacia em matéria de IA será “a causa mais provável da 3ª guerra mundial”. Esclareceu que, do seu ponto de vista, a guerra não seria desencadeada por um chefe de fila mundial, mas por uma IA, a título de ataque preventivo. (20)

Esta evolução dramática e o seu impacto profundo na perenidade da civilização moderna será o tema principal de uma próxima análise.

Amir Nour*

*     *

*

 

Artigo original em francês :

La quête éperdue de l’Übermensch: De l’Humanisme de la Renaissance à la naissance de l’homme robot

 

 

Referências

  1. *Amir Nour : Investigador argelino, em relações internacionais, autor do livro “L’Orient et l’Occident à l’heure d’un nouveau Sykes-Picot” (“The Orient and the Occident in time of a new Sykes-Picot”), Edições Alem El Afkar, Argel, 2014: pode ser descarregado gratuitamente em: http://algerienetwork.com/blog/lorient-et-loccident-a-lheure-dun-nouveau-sykes-picot-par-amir-nour/ (Francês)
  2. O antigo director da revista foi John Micklethwait (2006-2015), que participou em várias conferências secretas de Bilderberg e contribuiu para os seus debates e as suas conclusões secretas. Cf. a lista de participantes (http://bilderbergmeetings.org.participants.html) e os principais temas (http://cnbc.com/2018/06/06/bilderbergmeetings-elite-focuses-on-politics.html  da reunião anual de 2018, que decorreu em Turim (Itália) em Junho de 2018.
  3. Ler: http://vigilantcitizen.com/vigilantreport/the-economist-the-world-in-2019-is-  full-of-cryptic-messages/
  4. Marcus Vitruvius Pollo, De Architectura Libri Decem, escrito ca. de 20-30 a.C. e “redescoberto” em 1414 pelo “humanista” italiano Poggio Bracciolini, na Abadia de Saint-Gall, na Suíça.
  5. Uma loja maçónica denominada Vitruvius Lodge # 145 foi criada em 1860 em Bloomfield, na Califórnia. Continua activa.
  6. Ler Richard Cassaro, What Does the Freemason’s ‘Square&Compass’ Symbol Really Stand For?, richardcassaro.com, 28 de Novembro de 2009.
  7. Ler Statement of Freemasonry and Religion, Masonic Service Association of North America.
  8. Segundo um estudo publicado na Acta Psychiatrica Scandinavia, em Dezembro  de 2006, a morte de Nietzsche não terá sido devida a uma paralisia demente (General Paralysis of the Insane – GPI), conforme se pensou durante muito tempo, mas a uma demência frontotemporal (Frontotemporal Dementia – FTD), que é uma demência crónica.
  9. Nick Bostrum, Superintelligence: Paths, Dangers, Strategies, Oxford University Press, 2014.
  10. (10) Ler Transhumanist FAQ, version 3.0, em:   http://whatistranshumanism.org
  11. (11)Idem, Op. cit.
  12. (12) Nick Bostrum, Op. cit.
  13. (13) Derek J. de Solla Price, Little Silence, Big Science… and Beyond, Columbia      University Press, 1988.
  14. (14) Jonathan Margolis, I am microchipped and have no regrets, The Financial Times,  8 de Maio de 2018.
  15. (15) Haley Weiss, Why You’re Probably Getting a Microchip Implant Someday, The Atlantic, 21 Septembre 2018.
  16. (16) Cofundador da empresa americana de neurotecnologia Neuralink, conhecida por desenvolver Brain-Computer Interfaces (BCI) implantáveis.
  17. (17) Jeff Stibel, Hacking the Brain: The Future Computer Chips in Your Head,  Forbes.com, 10 de Julho de 2017.
  18. (18) Ver 2017 UN report:      http://daccess-ods.un.org/TMP/6036958.69445801.html
  19. (19) RT, Whoever leads in AI will rule the world: Putin to Russian Children on  Knowledge Day, 1 de Setembro de 2017.
  20. (20) Karla Lant, Elon Musk: Competition for All Superiority at National Level Will Be The ‘Most Likely Cause of WW3, Futurism, 4 de Setembro de 2017.
Disclaimer: The contents of this article are of sole responsibility of the author(s). The Centre for Research on Globalization will not be responsible for any inaccurate or incorrect statement in this article.