A Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA) sobre Crimes de Guerra dos EUA no Afeganistão

A Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA, na sigla em inglês), organização clandestina e independente de mulheres afegãs que atuam no anonimato em favor dos direitos humanos, especialmente feministas, luta contra quatro inimigos em solo afegão: os senhores da guerra da Aliança do Norte colocada no poder pelos Estados Unidos em 2001, a ocupação norte-americana, o Taliban, e o Estado Islamita recém-surgido.

A representante da RAWA, que se identifica como Friba, concedeu esta entrevista sobre a situação de seu país há 15 anos de ocupação dos Estados Unidos sob promessa de promover liberdade, igualdade e justiça. A voz de Friba, que representa a dos mais de 30 mil afegãos inocentes assassinados e mais de 100 mil feridos por atos de terror e crimes de guerra desde outubro de 2001, enfrenta sérios riscos em um país historicamente estratégico para as grandes potências, e dos mais efervescentes do planeta hoje.

A militante afegã traz à luz fatos ocultados pela mídia predominante que explicam a atual conjuntura global, especialmente as causas do terrorismo e as reais intenções do Império agonizante em promover guerras, e perpetuar ocupações militares. “Os Estados Unidos não se interessam pela prosperidade do Afeganistão. Instabilidade, insegurança, pobreza, analfabetismo e outros problemas sociais e econômicos profundamente enraizados, ajudam os Estados Unidos e seu governo fantoche a permanecer no poder”, afirma a entrevistada, direto de Cabul.

“Os Estados Unidos cometeram crimes hediondos no Afeganistão na década passada, matando milhares de pessoas inocentes em ataques aéreos e incursões noturnas, e torturando afegãos inocentes em seus locais negros dentro de suas bases”, afirma a pacifista ao comentar a “Guerra ao Terror” que, apenas nos primeiros meses, matou muito mais inocentes que nos ataques em solo norte-americano há 15 anos, que apenas tem gerado mais radicalismo e violência no Oriente Médio, e em todo o mundo.

A seguir, a situação afegã vivida por dentro segundo a combativa líder da RAWA, uma das tantas heroínas anônimas de um dos países mais pobres e oprimidos pela propalada Operação Liberdade Duradoura dos Estados Unidos e da OTAN, formulada nos porões do poder global para levar caos e servir como pretexto para uma guerra sem fim.

Edu Montesanti: Por favor, fale sobre a RAWA e as dificuldades que seu país enfrenta hoje.

Friba: A Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão é a mais antiga organização das mulheres no Afeganistão, a qual luta por liberdade, democracia, justiça social e secularismo.

A fundadora da RAWA foi Meena, quem formou este grupo ainda jovem, em 1977, com a ajuda de algumas outras estudantes universitárias em Cabul. Meena foi assassinada em Quetta, Paquistão em 1987 por agentes do KHAD (sucursal afegã da KGB), com a ajuda do grupo fundamentalista sanguinário de Gulbuddin Hekmatyar. Ela tinha apenas 30 anos de idade.

O que distingue a RAWA de outras associações é o fato de que somos uma organização política. Quando a RAWA foi fundada, o Afeganistão estava sob a opressão do governo fantoche da União Soviética e, posteriormente, da invasão russa, e Meena percebeu que a luta por independência, liberdade e justiça era inseparável da luta pelos direitos das mulheres.

Depois do martírio de Meena, a RAWA deu seguimento à luta contra os fundamentalistas islamitas afegãos e seus apoiadores internacionais, o que faz até hoje. A RAWA ainda atua na clandestinidade na maior parte do Afeganistão, e enfrenta enormes dificuldades.

Os líderes jihadistas, senhores da guerra com passados sangrentos de crimes horríveis, estão no controle do atual governo e do parlamento, e tem seus domínios separados em diferentes partes do Afeganistão. Abdullah Abdullah, o chefe de Estado do Afeganistão, é um desses líderes jihadistas que pertence ao grupo criminoso de Shorae Nizar.

Isso cria uma situação perigosa para nós já que esses bandidos, nossos maiores inimigos, não param de dificultar nosso trabalho e nos prejudicar. Em outras partes do Afeganistão, onde os fundamentalistas talibans estão no controle, a RAWA enfrenta a mesma opressão. Todas as nossas ativistas usam pseudônimos por precaução, e nunca podemos aparecer em público com nosso trabalho.

Apesar destes obstáculos, ainda é possível continuarmos as atividades políticas na maior parte do país devido ao nosso contato com os habitantes locais, e ao fato de que o ódio destes contra aqueles criminosos traduz-se em apoio a nós.

Nossas atividades políticas incluem a publicação de revistas e artigos, a mobilização de mulheres para que adquiram esta consciência e, assim, juntem-se à nossa luta. Coletamos e documentamos assassinatos, estupros, roubos, extorsões e outros crimes desses senhores da guerra, nas partes mais remotas do Afeganistão.

Nossas atividades sociais são proporcionar educação às mulheres – e não apenas as aulas de alfabetização, mas também a consciência social e política quanto aos seus direitos e como alcançá-los -, ajuda emergencial, criação de orfanatos e atividades relacionadas à saúde.

Edu Montesanti: Como está o Afeganistão hoje, 15 anos após a invasão norte-americana?

Friba: Os Estados Unidos cometeram crimes hediondos no Afeganistão na década passada, matando milhares de pessoas inocentes em ataques aéreos e incursões noturnas, e torturando os afegãos inocentes em suas prisões secretas dentro de suas bases militares.

O massacre de Bala Baluk na província de Farah em 2009, que matou 147 afegãos inocentes, o massacre de Panjwai na província de Kandahar em 2012, que matou 16 afegãos inocentes, a matança de doze crianças inocentes na província de Kunar em 2013, e o ataque ao hospital de Médicos sem Fronteiras em 2015, na província de Kunduz, que matou 42 e feriu mais de 30 pessoas, são apenas alguns casos envolvendo derramamento de sangue causados por forças dos Estados Unidos e da OTAN no Afeganistão.

Apesar disso, a maior traição dos Estados Unidos ao Afeganistão é a reedição de criminosos fundamentalistas islamitas no poder. Como a história tem mostrado sempre e o presente prova, nenhuma intervenção ou ocupação estrangeira é inteiramente bem-sucedida sem a cooperação de um grupo de traiçoeiros internos, mercenários do país ocupante.

Hoje, o Afeganistão é governado por senhores da guerra fundamentalistas sanguinários e criminosos que compactuam com a ideologia do Taliban, e que cometeram crimes piores do que os do Taliban no passado. A Aliança do Norte, composta pelos elementos mais traiçoeiros e misóginos dos senhores da guerra e comandantes militares, foi imposta ao nosso povo através de três eleições historicamente fraudulentas.

Esses criminosos provocaram a guerra civil de 1992 a 1996 que matou mais de 65 mil civis em Cabul, e saquearam a cidade. Suas milícias cometeram assassinatos sistemáticos, estupros, estupros coletivos, extorsões, roubos, detenções arbitrárias, cortaram os seios das mulheres, cravaram pregos em crânios, realizaram rituais de matança horrível e centenas de outros crimes. Em vez de enfrentar a acusação nos tribunais internacionais por tais crimes, esses assassinos desfrutam da mais absoluta impunidade e engordam suas contas bancárias, com o apoio do Ocidente.

Inúmeros relatórios de organismos internacionais como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional documentaram os crimes cometidos pelos poderosos senhores da guerra em todo o Afeganistão, tanto no passado quanto no presente. Apesar disso, sabemos que este apoio é inabalável e continuará por décadas.

O novo governo do Afeganistão, denominado “Governo de Unidade Nacional”, é dirigido pelos mercenários de longa-data dos Estados Unidos, Ashraf Ghani e Abdullah Abdullah, ambos da Aliança do Norte que estavam unidos em um acordo quebrado por John Kerry, após os dois não terem concordado com os resultados das fraudulentas e repugnantes eleições presidenciais, repleta de sujeira; o resultado daquelas eleições foi oficialmente lançado um ano depois!

O vice de Ashraf Ghani é Rashid Dostum e outro foi Sarwar Danish, famosos criminosos enquanto os companheiros de chapa de Abdullah foram Mohammad Khan e Mohammad Mohaqiq, outros dois criminosos bem conhecidos. A primeira medida do novo governo foi assinar o Acordo de Segurança Bilateral, que legitima a presença a longo prazo dos Estados Unidos em nossa pátria, e foi o documento que oficialmente vendeu nossa independência aos Estados Unidos.

Não há nenhuma cara nova no governo. A única diferença é que, desta vez, os famosos criminosos das facções Khalq e Parcham, que eram marionetes da União Soviética, também têm recebido uma parte do poder apesar de terem sido incriminados em uma Lista da Morte que revelou os nomes de cinco mil ativistas políticos e intelectuais, mortos pelo regime nas décadas de 1970 e de 1980.

É desnecessário dizer que tal regime fantoche não pode trazer paz, liberdade, democracia, justiça e os direitos das mulheres, mesmo que se submeta a eleições cem vezes.

Segundo a ONU, o alcance do Taliban hoje é o mais amplo desde 2001. Os ataques suicidas do Taliban e a guerra constante entre o governo afegão e Taliban, fizeram um inferno na vida do nosso povo. A taxa de mortalidade civil em 2015 foi a maior já registrada, sendo que grande parte das vítimas era composta de mulheres e crianças.

Enquanto as feridas que o Taliban causou ao nosso povo ainda estão sangrando, as negociações de paz estão em andamento para incluir o Taliban no governo. Em vez de colocá-los em julgamento pelos crimes hediondos, estão sendo convidados para o governo com o objetivo de completar o círculo de fundamentalistas criminosos e mercenários no Afeganistão. Como pode uma força tão criminosa trazer paz ao tomar o poder?

Hoje, a economia do Afeganistão está em frangalhos. Mais de 60 bilhões de dólares foram doados ao Afeganistão para o propalado esforço de reconstrução, mas nem sequer alguns centavos chegaram ao nosso povo enquanto encheram os bolsos da máfia, dentro e fora do governo. Nos últimos treze anos nenhum projeto contribuiu para a reconstrução da base do país. Nenhuma infra-estrutura básica foi construída no país, e o desemprego atinge novos picos a cada dia.

A pobreza e a fome no Afeganistão estão entre as mais altas do mundo, apenas comparável às nações africanas. O Afeganistão tem a maior taxa de mortalidade infantil do mundo, milhões de pessoas sofrem de fome e desnutrição. 25% das crianças no Afeganistão trabalham para alimentar suas famílias, o que as impede de frequentar a escola e de ter acesso a outros direitos básicos.

O Afeganistão foi considerado o país mais corrupto do mundo nos últimos anos. Graças à invasão norte-americana, o Afeganistão é hoje um narco-Estado. Não é apenas o maior produtor de drogas fornecendo 90% do ópio mundial, mas também tem o maior índice [proporcional, grifo nosso] de usuários de drogas, com cerca de três milhões de viciados. Na recente entrevista coletiva de Londres, Ashraf Ghani afirmou que do lucro de 500 bilhões de dólares de drogas no Afeganistão, 480 bilhões fluíram para a Europa.

Isto não apenas revela o fracasso do Ocidente em sua chamada guerra contra as drogas no Afeganistão, como também suscita dúvidas em relação ao seu envolvimento neste negócio.

Edu Montesanti: Anos atrás, a escritora, ativista pelos direitos humanos e ex-parlamentar expulsa injustamente do cargo, Malalaï Joya, denunciou que a CIA segue coordenando o tráfico de drogas a partir do Afeganistão. Em uma entrevista por correio eletrônico (censurada) ao jornal brasileiro O Tempo, mais tarde enviada para mim na íntegra também por correio eletrônico, ela afirmou que “a economia de narcóticos do Afeganistão é um projeto traçado pela CIA, apoiada pela política externa dos Estados Unidos. Há relatos no Afeganistão de que até mesmo o Exército norte-americano está envolvido no tráfico de drogas. A máfia da droga faz parte dos porões do poder, apoiada pelo Ocidente”. O que você pode dizer sobre isso?

Friba: Nós apoiamos fortemente esta declaração de Malalaï Joya, baseada em fatos.

A CIA tem uma longa história de envolvimento no comércio global de drogas em todas as partes do mundo, sob controle dos Estados Unidos ou onde Washington exerce considerável influência. Alguns poucos casos foram investigados e expostos por jornalistas, mas a questão permanece encoberta.

A história da CIA começou na década de 1980. As drogas foram vistas como a maneira mais rápida e mais fácil de se obter dinheiro para financiar representantes da CIA e as forças paramilitares que os serviam, em diferentes países. Gary Webb, o corajoso jornalista que expôs o escândalo do tráfico de drogas dos Contra da Nicarágua, e que acabou sendo levado ao suicídio por uma extensa campanha de difamação pela grande mídia, descreveu o processo desta maneira:

“Nós [CIA] precisamos de dinheiro para uma operação secreta, e a maneira mais rápida para aumentá-lo é vendendo cocaína; vocês a venderão em algum lugar, não queremos saber nada sobre isso.”

Essa tática funcionou com muito sucesso no Afeganistão durante a Guerra Fria, quando as forças mujahideen que servem os EUA foram financiadas através das drogas.

Antes da invasão dos Estados Unidos em 2001, os campos de plantação de papoula foram erradicadas pelos talibans. Logo após a invasão dos Estados Unidos, a produção de drogas começou a aumentar drasticamente, e hoje o Afeganistão produz 90% do ópio do mundo, à beira de se tornar um narco-Estado. Há relatos de que as forças norte-americanas admitem que as drogas são transportadas a partir do Afeganistão em aviões norte-americanos.

Ahmed Wali Karzai, irmão do fantoche dos EUA, Hamid Karzai, ex-governador hoje morto na província de Kandahar, foi ao mesmo tempo o maior traficante não apenas do Afeganistão, mas da região. O tempo todo, ele esteva na folha de pagamento da CIA.

Houve, até mesmo, alegações por parte de oficiais norte-americanos diretamente envolvidos nas operações de drogas no Afeganistão sobre o envolvimento da CIA. Um agente da DEA [Drug Enforcement Administration, agência de fachada dos Estados Unidos, teoricamente anti-narcóticos que funciona como órgão da agência de inteligência norte-americana em todo o mundo], Edwrad Follis, afirmou que a CIA “fechou os olhos” para o tráfico de drogas no Afeganistão. Mais recentemente, John Abbotsford, ex-analista da CIA e veterano de guerra que lutou no Afeganistão, confessou que a CIA desempenhava seu papel em operações de contrabando de drogas.

Mesmo se excluirmos estas reivindicações e relatórios, é difícil acreditar que uma superpotência que possui a mais moderna tecnologia em vigilância e coleta de informações, não consegue encontrar campos de ópio e nem rastrear rotas de fornecimento dentro de um país que ocupa. O fato de que 8 bilhões de dólares foram gastos em esforços de erradicação da droga durante a última década, mas a produção de ópio tem apenas subido, é por si só uma indicação de que o negócio da droga serve a algum interesse dos Estados Unidos no Afeganistão, ou que teria sido concluído há muito tempo.

Outras protagonistas desses tão chamados esforços “antinarcóticos” são empresas privadas norte-americanas que ganham milhões de dólares por meio de contratos antinarcóticos. Uma das maiores beneficiárias é a notória empresa militar Blackwater, agora conhecida como Academi que, de acordo com a [rede de notícias] Russia Today, ganhou 569 milhões de dólares através desses contratos. Empreiteiras privadas têm uma enorme parcela sobre os lucros da guerra no Afeganistão, e essa fracassada guerra às drogas proporciona enormes lucros a elas.

Na verdade, uma das razões para a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos é que os norte-americanos devem manter o controle sobre o negócio de narcóticos, terceiro mais importante produto de comércio em termos de rendimento, depois do negócio das armas e do petróleo.

Edu Montesanti: Qual a situação das mulheres no Afeganistão hoje, as quais os Estados Unidos prometeram libertar da forte misoginia local em 2001?

Friba: A terrível situação das mulheres afegãs sob o regime de mentalidade medieval do Taliban foi explorada pelos Estados Unidos como uma das principais razões para invadir o Afeganistão em 2001. Vejamos como esta “libertação” foi cumprida.

Como todas as pessoas do Afeganistão, as mulheres estão esmagados entre diversas forças em uma guerra contínua, e a insegurança que assola nosso país por mais de uma década: os Estados Unidos e seus aliados, os jihadistas e fundamentalistas do Taliban, e o recém-surgido ISIS [Estado Islamita].

O Parlamento tentou legalizar o apedrejamento até a morte por adultério, a surra na esposa e assassinato em nome da honra [do homem]. A maioria das mulheres em prisões afegãs hoje foram condenadas pelo Judiciário misógino por “crimes morais”, tais como fugir de casa de maridos e de sogros crueis, fugir com amante, etc.

Inúmeros casos de amarração pública e execuções foram realizados pelos tribunais simulados de talibans, senhores da guerra locais e mulás em todas as partes do Afeganistão.

A situação das mulheres hoje é catastrófica. A violência contra as mulheres subiu a níveis sem precedentes hoje. As mulheres sofrem de violência doméstica, estupro, estupro coletivo, abuso sexual, homicídio, imolação, o assassinato honroso, casamentos forçados a menores de idade com homens muito mais velhos que elas, troca de meninas no casamento por mercadorias, e dezenas de outras desgraças semelhantes. As meninas têm sido torturadas nos porões, têm tido narizes, lábios e orelhas decepados, têm sido privadas de comida e espancadas até a morte, pelas famílias ou pelos sogros. O que ficamos sabendo através da mídia é apenas a ponta do iceberg.

Em 2001, os Estados Unidos e seus aliados usaram a situação das mulheres afegãs como pretexto para ocupar o Afeganistão; eles usaram especialmente a imagem de uma mulher afegã chamada Zarmina, assassinada publicamente pelo Taliban no estádio esportivo de Cabul. Contudo, apenas algumas semanas atrás uma mulher afegã foi executada publicamente de maneira semelhante, e os meios de comunicação ocidentais fecharam os olhos diante disso, e ainda não relataram o fato.

As taxas de auto-imolação atingiram novos picos. Muitas mulheres queimam-se vivas ao não enxergar outra solução aos seus problemas. Os legisladores, magistrados e policiais em todo o Afeganistão são fundamentalistas misóginos que impõem suas mentalidades anti-feministas em forma de leis, e oferecem impunidade total aos autores desses horrendos crimes. É natural que, em tal situação, a violência contra as mulheres apenas vai continuar subindo.

No ano passado, o Afeganistão testemunhou o crime mais horrível já cometido contra uma mulher afegã em plena luz do dia, no centro de Cabul, debaixo o nariz dos policiais locais e do governo. Farkhunda, estudante de 26 anos de idade, foi linchada por uma multidão de bandidos que, falsamente, acusaram-na de ter queimado o Alcorão. Ela levou chutes, socos, foi atropelada por um carro, apedrejada e, em seguida, queimada e jogada no seco rio de Cabul. A maioria dos assassinos de Farkhunda foram liberados dias após a detenção. Dos quatro detidos, um foi condenado a apenas dez anos de prisão, e os outros três a 20 anos. Suas penas de morte foram revogadas em sessões de julgamento ridiculamente curtas.

Mais tarde, ainda no ano passado, Rukhshana de 19 anos foi apedrejada até a morte por um tribunal desonesto do Taliban em uma província ocidental do Afeganistão dominada por mulás, por ter fugido. Seus gritos ecoaram por todo o país enquanto ela era lentamente assassinada por uma multidão enfurecida de talibans. Uma delegação foi enviada por Ashraf Ghani, presidente afegão, para investigar e punir os autores dos crimes. A delegação foi chefiada por um mulá, que apoiou o Taliban e defendeu abertamente o apedrejamento da jovem como sendo islamita e juridicamente legal, alguns dias após o incidente. A investigação foi, sem surpresa, inútil.

Talvez o reflexo mais claro da mentalidade da atual legislatura partiu de Nazir Ahmad Hanafi, proeminente legislador afegão cuja acalorada entrevista com Isobel Yeung culminou com uma evidente ameaça: “Talvez eu devesse entregar-lhe a um afegão para que decepasse seu nariz”, em referência à mutilação de uma jovem de 20 anos, Reza Gul, que teve o nariz mutilado pelo esposo pelo “crime moral” de ter fugido de casa.

O Afeganistão ainda tem uma das mais altas taxas de mortalidade materna do mundo, com milhares de mulheres morrendo durante o parto a cada ano. A taxa de alfabetização oficial está em 18%, ainda que considerando a realidade do território nacional a taxa seja muito menor que essa. O Afeganistão é, com razão, chamado de um dos piores lugares para ser mulher.

Os Estados Unidos têm feito uma piada em nome da democracia e com os direitos das mulheres em nosso país, apoiando os criminosos mais misóginos do governo, e descaradamente usando a presença simbólica de funcionárias governamentais, do sexo feminino, para enganar o mundo sobre a situação real. A maioria dessas mulheres estão vinculadas aos mesmos partidos fundamentalistas e criminosos, e são tão antidemocráticas e misóginas quanto seus homólogos masculinos. Os outros estão, simplesmente, usando esta oportunidade para engordar suas contas bancárias com a corrida do ouro da ajuda externa.

As outras realizações das mulheres, tais como reabertura de escolas e de postos de trabalho para mulheres, são limitadas a algumas cidades urbanas do Afeganistão com a maioria das mulheres ainda sofrendo com o atual fogo do Inferno.

Neste momento, o governo fantoche afegão está negociando com Gulbuddin; quer tirar seu nome da lista negra da ONU, dar-lhe proteção jurídica e impunidade. Mas este é o mais notório senhor da guerra afegão, e maior inimigo dos direitos das mulheres que costumava jogar ácido no rosto de mulheres, publicamente.

Os Estados Unidos usam esses “ganhos” superficiais como pretexto para darem seguimento à ocupação militar no Afeganistão, ameaçando que eles serão perdidos após sua chamada retirada. É uma verdade fundamental que os ganhos hard-lutou feitas pela verdadeira luta das mulheres nunca são perdidas, e os EUA usa essas mudanças cosméticas como uma cortina de fumaça para justificar a sua invasão ao povo do mundo.

Edu Montesanti: Como o povo afegão, em geral, vê a longa ocupação dos Estados Unidos?

Friba: Os afegãos estão fartos, sabem que o Ocidente os traiu, que vieram com longas alegações de “direitos humanos”, “direitos das mulheres” e “democracia”, mas na verdade eles empurraram o Afeganistão no sentido de desastres e de um Estado mafioso, e tudo o que fizeram foram apenas mudanças cosméticas.

Eles estão fartos dos crimes e brutalidade das forças dos Estados Unidos no Afeganistão ao longo dos últimos 15 anos, porque dezenas de milhares de afegãos foram mortos por suas bombas e tiroteios, e na verdade o terrorismo foi ainda mais alimentado que antes.

Eles estão fartos com o fato de que o Ocidente está contando com as bandas mais brutais e desumanas, e em nome da “Guerra ao Terror”, na verdade, apoia terroristas e usa o terrorismo como uma arma para derrotar seus rivais como Rússia e China.

Edu Montesanti: Quanto os Estados Unidos são sinceros em libertar o Afeganistão? Você acha que os Estados Unidos desejam um Afeganistão instável?

Friba: O clamor dos Estados Unidos e da OTAN de “libertar” o Afeganistão é apenas slogan barato, e na verdade eles são invasores e destruidores da “libertação”. Os Estados Unidos não têm interesse na prosperidade do Afeganistão. Na verdade, a instabilidade, a insegurança, a pobreza, o analfabetismo e outros problemas sociais e econômicos profundamente arraigados ajudam os Estados Unidos e seu governo fantoche a permanecer no poder, sem nenhuma oposição do povo.

Na verdade, o governo dos Estados Unidos tem as mãos sujas de sangue diante dos acontecimentos das últimas quatro décadas no Afeganistão. Eles apoiaram elementos armados, sedentos de sangue em nosso país, e levaram o Afeganistão a essa atual condição desastrosa. Se os Estados Unidos quisessem estabilidade e prosperidade, teriam dado os bilhões de dólares de ajuda para investimentos em infra-estrutura básica e não para encher os bolsos dos senhores da guerra e ONGs corruptas, que prosperaram sob a ocupação norte-americana. Esta corrida do ouro levou o Afeganistão a se tornar o país mais corrupto do mundo.

Os Estados Unidos e a OTAN tentam transformar não só o Afeganistão, mas toda a Ásia em uma região instável. Enquanto a economia mundial se volta para a Ásia com grandes potências, como Rússia, China, Índia, etc, os Estados Unidos contam com o terrorismo como arma para bloquear o progresso especialmente de Rússia e China, e causam problemas para estes países.

O Afeganistão tornou-se centro deste jogo de poder entre as grandes potências, mais uma vez. Igualmente, temos relatos de que a Rússia também arma o Taliban e os senhores da guerra no Afeganistão, para combater o plano dos Estados Unidos de exportar o terrorismo para repúblicas da Ásia Central e à própria Rússia. Neste jogo, em que ambos os lados usam o terrorismo como arma, os afegãos estão enfrentando um banho de sangue e as coisas estão progredindo rapidamente em direção a novas guerras, e mais derramamento de sangue.

Edu Montesanti: E por que, exatamente, os Estados Unidos estão tão interessados no Afeganistão, a seu ver?

Friba: Neste ponto, depois de mais de uma década de agressão dos Estados Unidos em vários países da região, achamos que não resta nenhuma dúvida na mente de ninguém de que os Estados Unidos estão presentes em nosso país, e em outros países, por seus próprios interesses.

A posição geopolítica do Afeganistão oferece aos Estados Unidos vantagem única na região: acesso aos seus maiores rivais em todo o mundo, Rússia, China, Índia e Irã. Os Estados Unidos construíram [no Afeganistão] bases militares gigantescas e sua segunda maior Embaixada no mundo, e tem milhares de militares e empreiteiros privados estacionados em diferentes partes do Afeganistão.

Essas bases militares oferecem pontos à tentativa dos Estados Unidos de manter seus adversários sob seus domínios, e de continuar perseguindo seus principais objetivos na região. Além disso, e talvez mais importante, o governo traiçoeiro e fundamentalista do Afeganistão, junto de uma população desgastada com a guerra que tem sido executada por quatro décadas, muito cansada de lutar novamente, proporciona as condições ideais para as operações dos Estados Unidos aqui.

Os traidores do Estado afegão não apenas venderam o Afeganistão, mas têm mantido silêncio sobre os crimes brutais das forças dos Estados Unidos, e defendido todos os seus atos de agressão no país.

Os afegãos sabem agora que os Estados Unidos, simplesmente, usam o Afeganistão como frente na Ásia para avançar sua agenda regional, que é promover terrorismo para transformar a Ásia em ponto efervescente na terra com o intuito de deter o avanço das emergentes potências militares e econômicas no continente.

Se você acompanhar cada mudança significativa na situação do Afeganistão – como a transferência do Taliban e da guerra, a insegurança, o terror e a agitação que automaticamente vem em seguida – para as regiões do norte, tudo isso eles serve a um certo interesse de os Estados Unidos. Neste caso, estaria gerando instabilidade nas proximidades da Rússia, e até mesmo a instigando.

É importante salientar aqui que, ao contrário do geralmente propagado sobre os talibans como lacaios do Paquistão e, em menor medida, do Irã, a verdade é que em última análise são os Estados Unidos quem estão segurando a coleira desses indivíduos violentos.

Os talibans são a força de reserva dos Estados Unidos, que irão utilizá-los sempre que virem necessidade para isso. Não é segredo que o regime sanguinário taliban foi criado e alimentado pelos Estados Unidos, e será usado sempre que for necessário.

O Taliban serve a um duplo propósito para os Estados Unidos hoje: eles justificam a continuação da “Guerra ao terror”, e serve como seus procuradores em partes do Afeganistão que não estão sob o controle do propalado governo [nacional].

Hoje, nada no Afeganistão pode ocorrer ou ser alterado sem autorização do Estados Unidos, e seria muito ingênuo pensar de outra forma. Esta situação também expõe a mentira que o governo dos Estados Unidos disse ao mundo em 2014 sobre o término de sua guerra no Afeganistão, retirando as tropas e acabando com a guerra no Afeganistão. Os Estados Unidos continuam tendo uma forte presença no Afeganistão para fins geoestratégicos.

Edu Montesanti: Se eu bem compreendi, Friba, você quer dizer que o Afeganistão está pior agora que antes da invasão liderada pelos Estados Unidos.

Friba: Sim, absolutamente. Para além do que mencionei anteriormente, se considerarmos apenas a deterioração da situação de segurança, vital às pessoas mais que comida e água, podemos entender o quanto a situação está pior do que antes em todo o Afeganistão.

O ópio é outro vírus mortal que infecta nossa nova geração, e é ainda mais perigoso do Taliban e da Al-Qaeda. O número de civis mortos em ataques suicidas por talibans, os ataques noturnos e os ataques aéreos das forças dos Estados Unidos, e os crimes das milícias dos senhores da guerra locais em diferentes partes do Afeganistão aumentam a cada ano.

A economia do país está em ruínas, controlada pela máfia que traça o apoio de poderosos funcionários do governo afegão. Os Estados Unidos e a OTAN invadiram o Afeganistão com importantes alegações de “reconstrução do Afeganistão”, mas não vemos nenhum crescimento em nenhum setor fundamental do Afeganistão.

Apenas a máfia e as ONGs têm crescido em número e tamanho. Os afegãos são o segundo maior grupo de migrantes do mundo, enquanto os jovens se engajam em viagens perigosas a fim de escapar da miséria em suas casas. Muitos jovens hoje são viciados em drogas.

Nas áreas mais isoladas, a pobreza e o desemprego têm levado os jovens a se juntar ao Taliban e ao ISIS [Estado Islamita] já que estes fornecem necessidades básicas, e às vezes até pagam salários. As mulheres afegãs são tão reprimidas e estão sob constante ataque quanto estavam sob a regra medieval do Taliban.

Governos vizinhos como Irã e Paquistão nunca tiveram mãos tão manchadas de sangue diante dos assuntos do Afeganistão, como atualmente.

Este é apenas um breve resumo da situação desastrosa do país, mas é o suficiente para mostrar a devastação que os EUA trouxe sobre o nosso país e as pessoas.

Edu Montesanti: Como você disse, a história e os acontecimentos atuais mostram que ocupação nunca é bem-sucedida. Que alternativas a RAWA defende a fim de mudar definitivamente a catastrófica realidade do Afeganistão? Você vê ajuda externa como produtiva para efetivamente libertar o povo afegão dos personagens e dos grupos altamente violentos, mencionados por você? Se assim for, quem e como poderia ser prestada uma ajuda eficaz ao Afeganistão?

Friba: Sempre dissemos que a independência de um país é a primeira condição para democracia, liberdade e justiça. Há poucos, ou nenhum exemplo na história em que a intervenção estrangeira libertou ou ajudou uma nação, e nos últimos 14 anos da ocupação norte-americana do Afeganistão é uma prova disso.

Os Estados Unidos não apenas não libertaram o Afeganistão, mas impuseram ao nosso povo os maiores inimigos, os criminosos fundamentalistas. Os Estados Unidos são o criador e educador desses violentos grupos. É uma política consciente do governo dos Estados Unidos formar parceria com fundamentalistas islamitas onde quer que ele entra em cena. Vimos isso na Líbia e na Síria também. Os Estados Unidos afirmam estar combatendo o terror, mas os maiores terroristas, os criminosos da Aliança do Norte foram levados ao poder pelos próprios Estados Unidos. Contudo, isso não causou nenhuma surpresa. Logo no início da invasão norte-americana ao Afeganistão, a RAWA declarou que o propósito desta agressão era servir aos objetivos imperialistas dos Estados Unidos, e que naquela tragédia faria parceria com os piores inimigos do nosso país. O que menos importa aos Estados Unidos é o bem-estar do Afeganistão e do seu povo. A situação atual do nosso país, é prova disso.

A chave para a liberdade e para a democracia está em uma luta unida, organizada do nosso povo. Uma luta árdua que seja, mas não há outra maneira de sair deste atoleiro. Apenas as pessoas de um país podem decidir seu destino, e construir um sistema que lhes serve.

A solidariedade das pessoas libertárias e amantes da paz em todo o mundo é muito importante no fortalecimento da luta do nosso povo, também. Este será um processo longo e difícil, mas os afegãos não têm outra alternativa senão unir-se e lutar por liberdade, democracia, justiça e libertação.

Edu Montesanti: A RAWA defende um Afeganistão laico ou islamita, fundamentado na sharia?

Friba: Secularismo tem sido o slogan da RAWA desde sua fundação. Acreditamos que a democracia não tem sentido sem o secularismo. A religião tem sido historicamente utilizada como meio para manter o poder daqueles que governam, e em uma sociedade onde as pessoas são profundamente religiosas, a combinação entre Estado e religião é particularmente perigosa.

Hoje no Afeganistão, a maior ferramenta de fundamentalistas atuais na utilização da força para defender seus atos e se proteger, é o Islã. Todos os criminosos fundamentalistas no poder encobrem seus crimes usando o Islã. Este tem sido utilizado para anular a indignação das pessoas, e o desejo delas de se levantar e de lutar por seus direitos.

O Taliban tem sido capaz de transformar jovens inocentes em mortais atacantes suicidas, através da lavagem cerebral baseada em ideias religiosas. Infelizmente, esse mau uso da religião tem servido muito bem.

Por essa razão, o secularismo é vital ao nosso país hoje, para extirpar o fundamentalismo e construir uma sociedade livre desse vírus mortal. Só assim o Afeganistão pode dar um passo em direção ao progresso e à prosperidade.

Edu Montesanti: A misoginia é senso-comum no Afeganistão, ou reduzida aos senhores da guerra e ao Taliban?

Friba: Não há dúvida de que o Afeganistão é atormentado pelo atraso, cultural e economicamente. Durante séculos, os monarcas reacionários injetaram e utilizaram ideias reacionárias para manter-se no poder. No entanto, nas últimas três décadas, quando os fundamentalistas islamitas dominaram o Afeganistão, o atraso do país tornou-se mais comum e extremo que nunca.

Um dos aspectos do Islã amplamente propagado por radicais islâmicos, é a degradação e a opressão das mulheres, vistas mais como animais que como seres humanos. As mulheres vivem apenas para serem vistas como servas que trabalham em casa, dar à luz a filhos e satisfazer as necessidades sexuais dos homens.

A violência familiar é um dos mais desgastantes e dolorosos problemas das mulheres no Afeganistão, assim como na maioria dos outros países muçulmanos, e é principalmente apoiada pelos governos de linha dura. Este problema, em parte alimentado com os ensinamentos islamitas que são dados aos homens… e mulheres desde a infância.

Há versos do Alcorão a este respeito, que dizem que:

“Suas mulheres são uma lavoura para você (cultivar); assim, vá à sua lavoura como quiser” (2: 223)

“Os homens estão a cargo das mulheres… Quanto àquelas a quem vocês temem rebelião, as admoestem e as isolem em camas separadas” (04:34)

Há um monte de versos deste tipo no Alcorão. Homens justifica sua superioridade e o tratamento desumano e relação às mulheres com base e, tais versos. E, é claro, em uma série de declarações do profeta Maomé ou de outras fontes religiosas, e sobre uma grande quantidade de poemas e histórias; aliás, poetas populares reforçam estes versos e, todos juntos, afetam homens de maneira tão maléfica que se eles tratam as mulheres com ligeira humanidade e bondade, sentem-se como se estivessem cometendo o maior pecado de suas vidas! Nos livros e fontes mencionadas, existem algumas palavras de compaixão e bondade para com as mulheres, mas fracassaram em proteger as mulheres do sofrimento contra elas.

Nos países muçulmanos onde os princípios seculares têm encontrado algum espaço dentro da sociedade, a profundidade desta violência não é tão ruim quanto naqueles infestados pelo fundamentalismo.

Edu Montesanti: As ativistas da RAWA acreditam no Alcorão? Qual a religião das mulheres da RAWA?

Friba: Acreditamos que a religião é um assunto completamente pessoal, e que não importa para nós se alguém na RAWA é religiosa ou não. O que é importante para nós é que elas sejam livres do aspecto reacionário da religião que impede qualquer luta, especialmente a luta revolucionária.

Os versos mencionados são amplamente utilizados por clérigos fundamentalistas para justificar seu tratamento desumano contra as mulheres, e para encorajar este tratamento entre as pessoas. Enquanto nossa luta não tem como objetivo a própria religião, em vez daqueles elementos que abusam de religião, esses versos têm de ser mencionados como eles são os mais comumente usados.

Nós acreditamos em secularismo, o qual simplesmente separa Estado e religião e que tem o maior respeito por quaisquer crenças pessoais, de qualquer um. Toda a nação do Afeganistão, salvo uma minoria muito pequena, é muçulmana, mas ela seguem apenas as boas ações estabelecidas pelo Islã e nunca o usa para justificar maus tratos contra mulheres, contra os não-muçulmanos, etc. Esta versão do Islã é respeitada por nós, mesmo que não seja aceita como parte de nossas crenças.

Sua página sobre cultura afegã parece ótima [Cultura & Arte Afegã, em www.edumontesanti.skyrock.com]. No entanto, existem algumas práticas culturais importantes do Afeganistão que são completamente ignoradas. O evento que você descreveu, o Eid, é uma celebração religiosa. Os fundamentalistas afegãos acabaram propagando o Eid como a celebração mais popular do Afeganistão devido ao seu aspecto islamita.

No entanto, isso não é verdade. Os afegãos seguem o calendário solar e comemorar seu ano novo em 20 ou 21 de março de cada ano. Isso é chamado de ‘Nowroz’ – Novo Dia. As pessoas usam roupas novas, vão a piqueniques com suas famílias e comemoram com música e dança. Eles fazem um prato de doce de sete frutas secas embebidas em calda doce, e cozinham o prato tradicional de arroz branco com espinafre. Esta tradição vem de antepassados afegãos não-islamitas, os Zardosht – ou aqueles que adoravam o fogo. É o acontecimento mais amplamente comemorado no Afeganistão.

Mesmo décadas de guerra e de dominação fundamentalista não foram capazes de apagar essa tradição. Por favor, dê uma olhada nisto: Why Afghanistan’s Nowruz has been interrupted. Este acontecimento é particularmente importante, uma vez que remete aos nossos primeiros ancestrais quando o Islã não era nem nascido ainda. Mais importante, apesar da propaganda generalizada e dos esforços por parte do clérigo, tanto do Taliban quanto do governo, as pessoas comemoraram amplamente o evento deste ano, e continuarão a fazê-lo.

Edu Montesanti: Como vivem as ativistas da RAWA, especialmente com seus cônjuges em uma sociedade altamente misógina como esta? Como seus maridos aceitam e o quanto apoiam seus pontos de vista revolucionários?

Friba: As ativistas da RAWA são mulheres de excepcional sorte em uma sociedade devastada. Nossos maridos e outros familiares do sexo masculino são muito favoráveis, apesar de não desempenharem nenhum papel na organização, propriamente. Na verdade, temos um grupo muito grande de apoiantes do sexo masculino.

Há outros grupos revolucionários e de esquerda no Afeganistão que são predominantemente comandados por homens – ao contrário de nossa organização, somente feminina – que nos apoiam também. Nosso próprio líder, o marido de Meena, Faiz Ahmad, o líder da Organização de Libertação Afeganistão, organização de esquerda radical que existe até hoje e única organização de esquerda que sobreviveu à opressão de quatro décadas de guerra.

Faiz Ahmad foi assassinado alguns meses antes de Meena, pelo mesmo criminoso Gulbuddin Hekmatyar, quem também matou Meena. As atividades de Meena e de Faiz tinham se tornado um espinho nos olhos dos fundamentalistas islâmicos no Paquistão e da inteligência secreta do Afeganistão, por isso foram mortos.

Edu Montesanti: Como você avalia a cobertura do Afeganistão por parte da mídia predominante? Como a RAWA avalia as organizações internacionais de “direitos humanos”, e a posição da chamada comunidade internacional relativos à Questão Afegã?

Friba: Não é mais segredo que a grande mídia é utilizada como uma arma nas guerras modernas. A grande mídia mundial, em especial a dos Estados Unidos, tem servido aos propósitos imperialistas dentro de seus países melhor que qualquer outra ferramenta.

Os povos desses países não têm a verdadeira imagem das guerras dos Estados Unidos para tomar decisões adequadas e bem-informadas sobre elas. O Afeganistão raramente faz parte de alguma cobertura e quando vira notícia, é sistematicamente noticiado de acordo com a política geral dos Estados Unidos.

Os crimes das forças dos Estados Unidos tais como assassinatos, torturas e ataques noturnos nunca serão mostrados, assim como a insegurança e a instabilidade do nosso país, e da situação devastadora das mulheres e das pessoas não recebe nenhuma atenção. São mostrados os horrores dos crimes do Taliban para justificar a guerra dos Estados Unidos, ou isoladas “histórias de sucesso” para pintar um quadro cor-de-rosa da situação do Afeganistão.

Com que frequência as pessoas são incentivadas a discutir o envolvimento dos Estados Unidos em guerras pelo mundo, fornecendo-lhes fatos verdadeiros? O mesmo vale para outros países onde os crimes de ditadores como Saddam Hussein, Muammar Gaddafi e Bashar Assad são enviados continuamente, mas a completa devastação do Iraque e da Líbia pelas forças dos Estados Unidos e de seus governos fantoches, e o apoio incondicional dos Estados Unidos aos elementos do Estado Islamita (renomeado de Al-Nusra e Al-Qaeda, por exemplo) na Síria nunca são mostrados. Na verdade, eles encontram formas cobrir com cal tais ações dos Estados Unidos.

Enquanto algumas organizações internacionais de direitos humanos têm desempenhado importante papel no Afeganistão em quatro décadas de guerra documentando crimes, publicando relatórios e chamando a atenção do mundo para estas questões, o mesmo não pode se dizer em relação a toda a comunidade internacional. A comunidade internacional e seus parceiros no Afeganistão têm sido envolvidas apenas em questões superficiais que não têm nenhuma relevância ao povo afegão, tais como projetos de curto prazo e a instituição de ONGs inúteis. Eles não têm lançado luz sobre o conjunto de questões fundamentais do Afeganistão como a ocupação norte-americana, a presença de fundamentalistas no poder e seus crimes. De fato, eles dão uma mão amiga aos principais meios de comunicação do mundo para retratar a situação no Afeganistão como “melhor” do que era há 15 anos.

Mas é claro que a mídia alternativa como Democracy Now!, etc, reflete a realidade, mas suas reportagens são enterradas sob as peças de propaganda veiculadas pelos grandes meios de comunicação, tais como CNN, BBC, AP, Fox News, etc, que têm grande cobertura e recursos para fazer as pessoas de bobas.

Edu Montesanti: Quem são os maiores inimigos dos afegãos?

Friba: Os afegãos são esmagados entre quatro inimigos atualmente: as forças dos EUA e da OTAN, os criminosos e senhores da guerra da Aliança do Norte no governo, o Taliban e um Estado Islamita emergente.

Os Estados Unidos têm gerado todos esses elementos fundamentalistas criminosos, e ainda têm licença para cumprir seus propósitos na região. Isso significa que os criminosos da Aliança do Norte apreciam a maior parte do apoio ocidental, tanto financeira quanto politicamente, o que os torna mais perigoso que outros bandos. A crueldade do Taliban e do Estados Islamita é bem conhecida do mundo, e recebem apoio militar e financeiro dos Estados Unidos, do Paquistão e até mesmo do Irã.

Todos esses inimigos são poderosos e controlam diferentes partes do país. Nas batalhas entre essas forças, nos terríveis ataques aéreos, suicidas e de foguetes levados a cabo por eles, apenas nosso povo sofre.

Edu Montesanti: Quais as perspectivas da RAWA para o Afeganistão diante do atual cenário? O que você gostaria de dizer ao mundo e, em especial, para o Ocidente, para os norte-americanos e ao governo deles?

Friba: Se a situação política do Afeganistão permanece inalterada, a situação atual apenas vai se tornar mais sombria. O povo do Afeganistão continuará sofrendo com insegurança, pobreza, corrupção, desemprego e outros problemas devastadores. Nosso povo vai continuar sendo vítima dos crimes das forças dos Estados Unidos, dos senhores da guerra, do Taliban e dos jihadistas. Há apenas um caminho para a atual situação poder mudar: através das próprias pessoas que lutam por seus direitos e por um país melhor, contra seus principais inimigos, os senhores da guerra dos EUA, o Taliban, jihadistas).

Não temos nada a dizer aos governos ocidentais que têm o sangue de nossos pessoas inocentes manchados em suas mãos. Nossa mensagem às pessoas amantes da paz destes países é que eles têm que enxergar a realidade do Afeganistão, e de todos os outros países que os Estados Unidos invadiram. O que eles veem como raras notícias da situação catastrófica nesses países, é a realidade cotidiana do povo.

Eles precisam pressionar seus governos para que mudem esta política de invasões e de ocupação, e serem solidários às pessoas que são vítimas dessas guerras. Esta solidariedade internacional fortalecerá a luta pela liberdade e pela democracia nesses países.

Eles devem saber que o imposto que pagam é usado por seus governos para tornar o Afeganistão e outros países em guerra em um Inferno, que irá impactar diretamente suas vidas e tornar os países ocidentais inseguro, como o que testemunhamos hoje nas cidades europeias.

 

Artigo original em inglês :

rawa

US War Crimes against Women: The Revolutionary Association of the Women of Afghanistan (RAWA): Interview, 17 de Maio de 2016


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