Os BRICS e a ficção da “desdolarização”

Os media financeiros, bem como segmentos dos media alternativos, estão a apontar um possível enfraquecimento do US dólar como divisa do comércio mundial devido à iniciativa dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul).

Um dos argumentos centrais nestes debate sobre as divisas mundiais em competição repousa na iniciativa dos BRICS de criar um banco de desenvolvimento o qual, segundo analistas, desafia a hegemonia da Wall Street e de Washington baseada nas instituições de Bretton Woods.

O New Development Bank (NDB) do BRICS foi estabelecido para desafiar os dois principais gigantes ocidentais – o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. O papel chave do NDB é servir como um fundo (pool) de divisas para projectos de infraestrutura dentro de um grupo de cinco países com grandes economias nacionais a emergirem – Rússia, Brasil, Índia, China e África do Sul. (RT, 09/Outubro/2014, ênfase acrescentada).

Mais recentemente foi enfatizado o papel do novo Asia Infrastructure Investment Bank (AIIB), da China, o qual, segundo informações dos media, ameaça “transferir o controle financeiro global da Wall Street e da City de Londres para os novos bancos e fundos de desenvolvimento de Pequim e Shangai”.

Tem havido um bocado de exagero dos media quanto aos BRICS.

Apesar de a criação do BRICS ter implicações geopolíticas significativas, tanto o AIIB como o proposto banco de desenvolvimento do BRICS (NDB) e seu Esquema de reserva de contingência (Contingency Reserve Arrangement, CRA) são entidades denominadas em dólar. A menos que sejam complementadas por um sistema de comércio e crédito com divisas múltiplas, não ameaçam a hegemonia do dólar. Muito pelo contrário, tendem a apoiar e estender empréstimos denominados em dólar. Além disso, replicam várias características da estrutura de Bretton Woods.

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Rumo a um esquema de divisas múltiplas? 

Contudo, o que é significativo de um ponto de vista geopolítico é que a China e a Rússia estão a desenvolver um swap rublo-yuan, negociado entre o Banco Central Russo e o Banco Popular da China.

A situação dos outros três estados membros do BRICS (Brasil, Índia, África do Sul) em relação à implementação de swaps de divisas (real, rupia, rand) é bem diferente. Estes três países altamente endividados estão na camisa de força das condicionalidades do FMI-Banco Mundial. Eles não decidem sobre questões fundamentais de política monetária e reforma macroeconómica sem o sinal verde das instituições financeiras internacionais com sede em Washington.

Swaps de divisas dos bancos centrais BRICS foram activados pela Rússia para:

“facilitar o financiamento do comércio e evitar totalmente o dólar. Ao mesmo tempo, o novo sistema actuará também como um substituto de facto do FMI, porque permitirá aos membros da aliança destinarem recursos para financiar os países mais fracos”. (Voice of Russia).

Apesar de a Rússia ter levantado formalmente a questão de um esquema multi-divisas, a estrutura do Banco de Desenvolvimento actualmente não reconhece “oficialmente” uma tal estrutura:

“Estamos a discutir com a China e nossos parceiros BRICS o estabelecimento de um sistema de swaps multilaterais que permitirão transferir recursos para um ou outro país, se necessário. Uma parte das reservas de divisas pode ser destinada a isso [o novo sistema]”. (Governador do Banco Central da Rússia, Junho de 2014, agência de notícias Prime)

A Índia, África do Sul e Brasil decidiram não acompanhar um esquema de múltiplas divisas, o qual teria permitido o desenvolvimento de comércio bilateral e actividades de investimento entre países BRICS, a operarem fora do âmbito do crédito denominado em dólar. De facto eles não têm a opção de adoptar esta decisão em vista das estritas condicionalidades de empréstimos impostas pelo FMI.

Pesadamente endividados e com o fardo dos seus credores externos, todos os três países são pupilos fiéis do FMI-Banco Mundial. Os bancos centrais destes países são controlados pela Wall Street e o FMI. Para eles, entrar num esquema de desenvolvimento bancário “não dólar” ou “anti-dólar”, com múltiplas divisas, exigiria aprovação prévia do FMI.

O Esquema de Reserva de Contingência 

O CRA é definido como uma “estrutura” para proporcionar apoio através de liquidez e instrumentos cautelares em resposta a reais ou potenciais pressões de curto prazo na balança de pagamentos”. ( Russia India Report , 07/Abril/2015). Neste contexto, o fundo CRA não constitui uma “rede de segurança” para países BRICS, ele aceita a hegemonia do US dólar a qual é sustentada por grandes operações especulativas nos mercados de divisas e de commodities. 

No essencial o CRA opera de um modo semelhante a um acordo de empréstimo cautelar do FMI (ex.: Brasil, Novembro de 1998) tendo em vista permitir países altamente endividados manterem a paridade da sua taxa de câmbio com o US dólar, pelo reabastecimento das reservas do banco central através de dinheiro emprestado.

O CRA exclui a opção política do controle cambial por parte dos estados membros do BRICS. No caso da Índia, Brasil e África do Sul, esta opção está em grande medida afastada devido aos seus acordos com o FMI.

O fundo CRA de US$100 mil milhões, denominado em dólares, é uma “bandeja de prata” para “especuladores institucionais” do Ocidente, incluindo o JP Morgan Chase, Deutsche Bank, HSBC, Goldman Sachs et al, os quais estão envolvidos em operações a descoberto (short selling)no mercado Forex. Em última análise, o fundo CRA financiará o ataque especulativo no mercado de divisas.

Neoliberalismo firmemente entrincheirado 

Um esquema que utiliza divisas nacionais ao invés do US dólar exige soberania na política monetária do banco central. Em muitos aspectos, a Índia, Brasil e África do Sul são (do ponto de vista monetário) estados serviçais (proxy) dos EUA, firmemente alinhados com os ditames económicos do FMI-Banco-Mundial-OMC.

Vale a pena recordar que desde 1991 a política macroeconómica da Índia estava sob o controle das instituições de Bretton Woods, com um antigo responsável do Banco Mundial, Dr. Manmohan Singh, a actuar como ministro das Finanças e posteriormente como primeiro-ministro.

Além disso, apesar de a Índia ser um aliado da China e da Rússia no âmbito do BRICS, ela entrou num novo acordo de cooperação com o Pentágono o qual é (não oficialmente) dirigido contra a Rússia e a China. E também está a cooperar com os EUA na tecnologia aeroespacial. A Índia constitui o maior mercado (após a Arábia Saudita) para a venda de sistema de armas estado-unidenses. Todas estas transacções são em dólares.

Analogamente, em 2010 o Brasil assinou com os EUA um acordo de defesa de longo alcance sob o governo de Luís Ignácio da Silva, o qual, nas palavras do antigo administrador-director do FMI, Heinrich Koeller, “É o nosso melhor Presidente”. “…sou entusiasta [da administração Lula]; mas é melhor dizer que estou profundamente impressionado pelo Presidente Lula, realmente, e em particular porque penso que ele tem credibilidade” (IMF Managing Director Heinrich Koeller, Press conference , 10 April 2003 ).

No Brasil, as instituições de Bretton Woods e a Wall Street têm dominado a reforma macroeconómica desde o início do governo de Luís Ignacio da Silva, em 2003. Sob Lula, um executivo da Wall Street foi nomeado governador do Banco Central, o Banco do Brasil estava nas mãos de um antigo executivo do CitiGroup. Se bem que haja divisões dentro do partido dominante, o PT, o neoliberalismo prevalece. A economia e a sociedade no Brasil é em grande parte ditada pelos credores externos do país, incluindo o JPMorgan Chase, Bank America e Citigroup.

Reservas do banco central 

A Índia e o Brasil (juntamente com o México) estão entre os mais endividados países em desenvolvimento do mundo. As reservas cambiais estrangeiras são frágeis. A dívida externa da Índia em 2013 era da ordem de mais de US$427 milhões, a do Brasil era de uns estarrecedores US$482 mil milhões ( World Bank, External Debt Stock, 2013 ). A dívida externa da África do Sul era da ordem dos US$140 mil milhões.

Stock de dívida externa (2013): 

Brasil US$482 mil milhões
Índia US$427 mil milhões
África do Sul US$140 mil milhões

Todos os três países têm reservas nos bancos centrais (incluindo ouro e haveres forexs) que são inferiores às suas dívidas externas. 

Reservas no banco central: 

Brasil US$359 mil milhões
Índia US$298 mil milhões
África do Sul US$50 mil milhões

A situação da África do Sul é particularmente precária, com uma dívida externa quase três vezes superior às reservas do seu banco central.

Isto significa que estes três estados membros dos BRICS estão sob o domínio dos seus credores ocidentais. Suas reservas no banco central são sustentadas por dinheiro emprestado. Suas operações de banco central (ex.: tendo em vista apoiar investimentos internos e programa de desenvolvimento) exigirão tomadas de empréstimos em US dólares. Seus bancos centrais são essencialmente esquemas “currency board”, suas divisas nacionais estão dolarizadas.

O Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NDB) 

Em 15 de Julho de 2014 o grupo de cinco países assinou um acordo para criar o Banco de Desenvolvimento BRICS com US$100 mil milhões, juntamente com um fundo em US dólares denominado “reserve currency pool” de US$100 mil milhões. Estes compromissos foram revistos ulteriormente.

Cada um dos cinco países membros “espera-se que atribua uma fatia idêntica de US$50 mil milhões como capital inicial que será expandido para US$100 mil milhões. A Rússia concordou em proporcionar ao banco US$2 mil milhões, a partir do [seu] orçamento federal ao longo dos sete anos seguintes” ( RT , March 9, 2015)

Por sua vez, os compromissos para o Contingency Reserve Arrangement são como se segue:

Brasil US$18 mil milhões
Rússia US$18 mil milhões
Índia US$18 mil milhões
China US$41 mil milhões
África do Sul US$5 mil milhões
Total US$100 mil milhões

Como mencionado anteriormente, Índia, Brasil e África do Sul são países pesadamente endividados com reservas de banco central substancialmente abaixo do nível da sua dívida externa. A sua contribuição para as duas entidades financeiras BRICS pode ser financiada só:

  • exaurindo suas reservas do banco central denominadas em dólar e/ou
  • financiando suas contribuições para o Banco de Desenvolvimento e o CRA através da contratação de empréstimos, nomeadamente através do agravamento da sua dívida externa denominada em dólar.

Em qualquer dos casos, a hegemonia do dólar prevalece. Por outras palavras, aos credores ocidentais destes países será exigido “contribuírem” directamente ou indirectamente para o financiamento das contribuições denominadas em dólar do Brasil, Índia e África para o banco de desenvolvimento dos BRICS (NDB) e para o CRA.

No caso da África do Sul que tem reservas do Banco Central da ordem dos 50 mil milhões de dólares, a contribuição para o NDB dos BRICS será inevitavelmente financiada por um aumento da dívida externa do país (denominada no US dólar).

Além disso, em relação à Índia, Brasil e África do Sul, sua condição de membros no Banco de Desenvolvimento BRICS foi sem dúvida objecto de negociações a porta fechada com o FMI bem como de garantias de que não se afastariam do “Consenso de Washington” sobre a reforma macroeconómica.

Sob um esquema pelo qual estes países estivessem no pleno controle da política monetária do seus respectivos bancos centrais, as contribuições para o Banco de Desenvolvimento (NDB) seriam atribuídas na divisa nacional, ao invés de em US dólares, sob um sistema multi-divisas. É desnecessário dizer que sob um sistema multi-divisas o fundo de contingência CRA não seria necessário.

As geopolíticas por trás da iniciativa BRICS são cruciais. Se bem que a iniciativa BRICS desde o seu arranque tenha aceite o sistema dólar, isto não exclui a introdução, numa etapa posterior, de um sistema de divisas múltiplas – o que desafiaria a hegemonia do dólar.

Michel Chossudovsky

 

O original encontra-se em www.globalresearch.ca/brics-and-the-fiction-of-de-dollarization/5441301

brics

BRICS and the Fiction of “De-Dollarization”

Traducido por resistir.info

Ver também :

O banco dos BRICS , Prabhat Patnaik, 28/Julho/2014


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About the author:

Michel Chossudovsky is an award-winning author, Professor of Economics (emeritus) at the University of Ottawa, Founder and Director of the Centre for Research on Globalization (CRG), Montreal, Editor of Global Research. He has taught as visiting professor in Western Europe, Southeast Asia, the Pacific and Latin America. He has served as economic adviser to governments of developing countries and has acted as a consultant for several international organizations. He is the author of 13 books. He is a contributor to the Encyclopaedia Britannica. His writings have been published in more than twenty languages. In 2014, he was awarded the Gold Medal for Merit of the Republic of Serbia for his writings on NATO's war of aggression against Yugoslavia. He can be reached at [email protected]

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