Língua & Preconceito: ‘Presidenta’ ou ‘Presidente’?

Uma das manifestações mais vivas da realidade cultural de uma nação e da identidade do indivíduo, a língua está sempre em transformação de acordo exatamente com as relações sociais, e não com as vontades dos gramaticoides de plantão, geralmente instrumentos de opressão linguística que não consideram em seus estudos, excessivamente teóricos, as implicações sociais envolvendo o idioma em questão.

Tal mutação também deu origem a novas línguas ao longo da história. Assim, vi em sueco, em norueguês e em dinamarquês (nós, em português) deságua em wir em alemão, wij em holandês e we em inglês. Vogn em norueguês e em dinamarquês transformou-se em vagn em sueco, que equivale a Wagen em alemão, wagon em inglês, em holandês e em francês (com pronúncias diversas), vagone em italiano, vagonem romeno, vagón em espanhol e em galego, vagó em catalão, bagoi em basco, vagão em português.

Já a modalidade esportiva que hoje é a mais popular do planeta, de fotball na Noruega acabou fotboll na vizinha Suécia, vindo a ser voetbal na Holanda, fodbold na vizinha Dinamarca, desceu um pouco mais o mapa do norte europeu para se transformar em Fußball na Alemanha, football em francês e em inglês que se hispanizou fútbol e se aportuguesou sendo simplesmente futebol, certamente, no início, gerando inconformismo nos setores mais conservadores das sociedades falantes de língua espanhola e portuguesa por não ser pronunciado como em inglés (algo semelhante a fuut-ból), da mesma maneira que lead em inglês, referindo-se ao primeiro paragrafo das notícias, virou lide em português.

Por sua vez, o idioma chamorro da ilha asiática de Guam, a oeste do Oceano Pacífico, que sofreu colonização espanhola de 1668 até 1898, possui exemplos desse processo linguístico: Bem vindo = Bien binidu (em espanhol, Bienvenido); Boa tarde = Buenas tåtdes (esp., Buenas tardes); Tchau = Ådios esta (esp. Adiós); Boa sorte = Buena suette (esp., Buena suerte); Boa viagem = Buen biåhe (esp., Buen viaje).

Retrocesso e Discriminação

Opondo-se a esta natural transformação até que se torna impossível resistir por muito tempo, os gramaticoides estudam a língua de maneira estática, a gramática pela gramática que se encerra na própria gramática, não tendo a sociedade como referência, autêntico sujeito da história: para eles, a sociedade e a própria história são objeto da gramática. Desta maneira, apregoam, deve-se adequar sua realidade, sua história, seus sentimentos, sua personalidade a ela. Em outras palavras: deve-se se submeter ao que lhe é ditado por seres completamente afastados de sua realidade cultural. No caso do Brasil, escravizado em pleno século XXI pelas regras e pela cultura lusitana que não é a sua, trancafiado neuroticamente em uma, na prática, inexistente comunidade lusófona internacional.

Como a sociedade brasileira é altamente polarizada e discriminadora, em todos os aspectos (regional, étnico, sexista, de gênero, de classe), tal caráter acaba se refletindo, invariavelmente, em um tipo de fragmentação e de preconceito que permeiam a sociedade ao mesmo tempo que acabam passando desapercebidos diante do forte apelo moralista e da reivindicação intelectual que os discriminadores trazem em seu bojo: a discriminação linguística, fortemente opressora.

A polarização, que se evidencia de maneira inconteste nestes efervescentes dias no Brasil, tem atingido inclusive linguistas das mais diversas vertentes, radicalizando cada vez mais ambos os lados. Se por um lado é inegável que a língua bem falada não pode ter como parâmetro a literatura portuguesa do século XIX, que possui peculiaridades regionais (regionalismos) absolutamente necessárias que devem ser preservadas e que, conforme já observado, ela se transforma (evolutivamente, espera-se) como reflexo das mais diversas experiências passadas de geração a geração (este é o conceito de cultura), por outro é inaceitável se justificar a língua mal falada neste quesito.

E exatamente isso tem ocorrido no Brasil: acentuada polarização entre gramaticoides – indivíduos de mentalidade elitista, a qual se transfere para a esquizofrenia linguística – e, digamos assim, os populistas que, no afã de ganhar adeptos na raivosa briga que atinge a classe dos linguistas, apela inclusive para, “quem está defendendo tal ideia linguística são os mesmos golpistas conservadores que saem às ruas hoje contra o povo”, a fim de estigmatizar toda e qualquer divergência (embora exista um grande fundo de verdade nisso, o que será abordado a seguir).

Evidentemente, existe um limite entre regionalismo, entre a realidade cultural de uma comunidade/nação, isto é, aquilo que se configura como perfeitamente aceitável dada a realidade inclusive daquela elite intelectual específica (segurem na cadeira, o “noi fumo” do campo paulista herdado do italiano noi = nós, por exemplo, tendo como célebre representante Adoniran Barbosa), e determinados atentados que não podem ser tolerados (o secular “tu qués” do estado brasileiro de Santa catarina, mesmo entre a elite econômica local, por exemplo, ou o “dar ele para eu“). Este é o motivo de choque entre as vaidades dos linguistas hoje.

‘Presidenta’ ou ‘Presidente’?

furor gramatical dos últimos anos no Brasil tem estado principalmente voltado ao uso de “presidenta” ou “presidente”, desde que Dilma Rousseff ganhou as eleições presidenciais em 2010. Dilma solicitou que lhe fosse aplicado o primeiro caso, suficiente para que uma das elites econômicas, auto-creditada nata intelectual das mais ignorantes do globo passasse a se manifestar de maneira tão contrária quanto o forte caráter que os marca: exatamente a ignorância dos fatos que alardeia dominar.

As classes média e alta têm causado grande polêmica sobre isso, que toma conta das faculdades de Letras e de Comunicação Social de péssimo gosto no Brasil – em sua maioria contrários, indignados diante do uso de ‘presidenta’. Trata-se de mais um tema em que simplesmente não há diálogo, mesmo entre estudantes e profissionais da área das letras e da comunicação.Pois trata-se também de mais um preconceito que, contra a “presidenta” Dilma, manifesta-se desde que assumiu o Palácio do Planalto das mais diversas maneiras; na verdade, todas as mulheres em um país, conforme apontado, altamente machista que permeia todos os segmentos da sociedade, da classe D à A.

O que a nata intelectual tupiniquim ignora (também) sobre o uso de “presidenta”, é que esta forma feminina foi aprovada por lei federal número 2749, no ano de 1956. Embora não haja consenso entre linguistas sob alegação de determinados setores de que “presidenta” pertence à classe das palavras comuns de dois gêneros, ambas as formas acabam sendo aceitas, tanto a feminina quanto a masculina. Contudo, no sentido estritamente gramatical, a regra manda aplicar a forma feminina. No idioma espanhol, por exemplo, apenas “presidenta” é admitido para mulheres.

A divergência entre linguistas se dá pela ampla consideração entre eles de que, segundo comunicado através do dicionário Lexikon, “substantivos e adjetivos de dois gêneros terminados em -ente não apresentam flexão de gênero terminado em -a”. Por isso, segue o informe, não se utiliza as formas “‘gerenta”, ‘pacienta’, ‘clienta’ etc. Caso fosse ‘presidenta’, por coerência, diríamos ‘a presidenta está contenta’ e ‘o presidente está contento'”.

Ao longo da história, algumas formas masculinas têm encontrado resistência em serem usadas oficialmente no feminino justamente pelo caráter sexista das sociedades globais. Entre a sociedade brasileira, especialmente entre linguistas o termo “engenheira”, utilizado pela primeira vez e aprovado nos idos do século XIX, gerou indignação inicial. Hoje, apenas a forma feminina é aplicada às profissionais da área do sexo feminino.

Se entre linguistas brasileiros o que aparentemente está em discussão são questões técnicas para a flexão do termo, a sociedade não tem pautado a histeria com base na consciência gramatical, longe disso: completamente afastada dela, permite que o que é regra, apesar da controvérsia de certos linguistas, seja motivo para polarização recheada do velho ódio discriminatório.

Como nos mais diversos casos atualmente no Brasil, que caminha de mal a pior, nossa elite do bem-dizer e do alto-saber, nesta questão do uso de “presidenta” ou “presidente”, para não perder o costume tem se fundamentado em letra morta – mas aqui, o que tampouco é exceção, com um q de ironia que marca de maneira bastante peculiar tais caçadores de bruxas: a mesma gramática à qual agressivamente se apegam (apenas de maneira teórica) para atacar e discriminar, a contradiz.

Também para o bom uso da nossa língua, o brasileiro anda precisando de livros, sim (e urgentemente), mas muito mais que isso: carece do exercício da cidadania que requer sentir o cheiro do povo. Isso tudo faz lembrar a ideia de Jesus aos fariseus de sua época, a cúpula religiosa conservadora, parasitária e corrupta: Quanto mais estudam menos sabem, e mais se distanciam de suas causas. Foram os próprios religiosos, mais estudiosos que esperavam pelo Messias, os que mataram Jesus fechados em suas letras mortas, tornados míopes por suas ideias pré-concebidas que produziam intolerância. Tropeçaram fatalmente naquilo que tanto usavam para atacar ao próximo.

Contextualizando tal realidade à brasileira dos tempos atuais, é exatamente nossa elite econômica e bem educada nas faculdades, que comercializam diplomas e formam grandes imbecis à sociedade, que estão matando nossa democracia acarretando, no futuro próximo, mais retrocesso cultural. De novo…

Edu Montesanti

www.edumontesanti.skyrock.com

Fonte da imagem  : http://conpoema.org/?p=2253


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