Cuba, os dissidentes e o direito de manifestação

Os meios de comunicação ocidentais foram o eco da proibição de uma manifestação da oposição, sem lembrar que o mesmo acontece diariamente nas democracias ocidentais

A proibição da manifestação organizada pela artista plástica cubana Tania Bruguera, que mora nos Estados Unidos, prevista para o dia 30 de dezembro de 2014, na Praça da Revolução, lugar emblemático de Havana onde acontece a maioria dos eventos políticos oficiais, levantou muitas polêmicas e controvérsias. A imprensa ocidental apontou o dedo para o governo cubano, acusando-o de restringir a liberdade de expressão e de atentar contra os direitos fundamentais.[1]

A convocatória, sob cobertura da expressão artística denominada “o sussurro de Tatlin #6”, era, na verdade, uma plataforma política aberta aos setores da oposição, inclusive aos ligados à Seção de Interesses norte-americanos, que recebem financiamento de Washington para suas atividades. Várias iniciativas similares estavam previstas para o mesmo dia em Nova York e Miami. As autoridades da capital decidiram não outorgar uma permissão oficial a essa iniciativa.[2]

Agência Efe

Manifestação diante da Praça da Revolução em 30 de dezembro

O Conselho Nacional de Artes Plásticas (CNAP) de Cuba não se solidarizou com Tania Bruguera, acusando-a de instrumentalizar sua ligação com a instituição para organizar uma manifestação que não era artística, mas política. Por sua vez, a Associação de Artistas Plásticos da União de Escritores e Artistas de Cuba denunciou “uma provocação política” cujo objetivo é “se situar contra as negociações [entre Raúl Castro e Barack Obama] que dão esperança a muitos seres humanos, em primeiro lugar aos onze milhões de cubanos”.[3]

Leia mais: Cuba mantém recorde e registra uma das menores taxas de mortalidade infantil do mundo

Ignorando a decisão das autoridades governamentais, Tania Bruguera decidiu manter sua convocatória, o que fez que a polícia a detivesse durante algumas horas por violar a decisão oficial, por resistência e desordem. A polícia também impediu que outras figuras da oposição, como Yoani Sánchez e seu marido, Reinaldo Escobar, participassem do acontecimento.[4]

Os Estados Unidos expressaram sua preocupação e condenaram a prisão de uma dezena de pessoas. O Departamento de Estado publicou um virulento comunicado contra o governo de Havana: “Condenamos energicamente o acosso contínuo por parte do governo cubano e o recurso reiterado à detenção arbitrária, às vezes com violência, para silenciar os críticos, perturbar as reuniões pacíficas e a liberdade de expressão e intimidar os cidadãos”.[5]

Análise de Breno Altman: Com acordo, Cuba vence queda de braço com Estados Unidos

Entretanto, o que a imprensa ocidental e Washington omitem é que Tania Bruguera teria sido presa em qualquer democracia ocidental. Conseguir uma autorização das autoridades para se manifestar é um requisito indispensável. Na França, por exemplo, onde se rejeitam centenas de petições de manifestação todas as semanas, está terminantemente proibido organizar uma agrupação sem o acordo escrito do departamento de polícia. A petição tem de ser feita “pelo menos um mês antes da data da manifestação” e “este prazo será de três meses como mínimo, se o evento projetado for agrupar muita gente”.[6]

Agência Efe

Sem autorização para acontecer, ‘manifestação artística’ terminou com várias pessoas detidas

Por outro lado, “cada petição deve conter toda a informação útil sobre o organizador (pessoa física ou jurídica) e sobre a manifestação (natureza, data, lugar, horário, número de participantes…)”. Na França, os organizadores de manifestações são penalmente responsáveis por todos os danos que o evento possa causar. O departamento de polícia insiste nesse ponto: “o organizador deve assumir a tarefa da segurança geral no local dedicado à manifestação. No caso de danos por imprudência ou negligência, a responsabilidade civil, inclusive penal, do organizador pode ser invocada tendo por base o artigo 1382 e os seguintes do Código Civil e os artigos 121-1, 121-2, 223-1 e 223-2 do Código Penal”.[7]

Assim, durante o verão de 2014, a França foi o único país do mundo que proibiu as manifestações de solidariedade à Palestina depois da mortífera agressão de Israel contra Gaza. A polícia dispersou violentamente os manifestantes e realizou dezenas de detenções. A justiça sancionou severamente várias pessoas por violar a proibição.[8]

A negativa das autoridades cubanas em dar a autorização é facilmente compreensível. A Praça da Revolução agrupa as sedes do governo, do Comitê Central do Partido Comunista e das Forças Armadas. Na França, seria impensável uma manifestação em frente ao Palácio do Eliseu, onde mora o presidente da República.

Outra vez, um acontecimento banal — uma manifestação não autorizada e a detenção dos protagonistas que não respeitaram a decisão das autoridades — que passaria despercebida em qualquer outro país do mundo, é o primeiro plano da imprensa internacional quando se trata de Cuba. Isso é bastante ilustrativo do nível de imparcialidade dos meios de comunicação nas democracias ocidentais.

Salim Lamrani

Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidade Paris Sorbonne-Paris IV,  Salim Lamrani é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama Cuba, the Media, and the Challenge of Impartiality, New York, Monthly Review Press, 2014, com prólogo de Eduardo Galeano.

Contato: [email protected] ; [email protected]

Página no Facebook: https://www.facebook.com/SalimLamraniOfficiel



[1]Nora Gámez Torres, « La artista Tania Bruguera está detenida en Cuba », El Nuevo Herald, 31 de dezembro de 2014.

[2]Ibid.

[3]UNEAC, « Declaración de la Presidencia de la Asociación de Artistas Plásticos de la UNEAC », 30 de dezembro de 2014.

[4]EFE, “Tania Bruguera está detenida por resistencia y desorden, según Policía cubana”, 31 de deembro de 2014.

[5] Jeff Rathke, « Detention of Activists », U.S. Department of State, 30 de dezembro de 2014. http://www.state.gov/r/pa/prs/ps/2014/12/235550.htm (site consultado em 31 de dezembro de 2014).

[6] Préfecture de Police de Paris, « Manifestation sur la voie publique ou sur tout espace ouvert au public », Ministère de l’Intérieurhttp://www.prefecturedepolice.interieur.gouv.fr/Demarches/Professionnel/Securite-et-accessibilite-des-batiments/Manifestation-sur-la-voie-publique-ou-tout-espace-ouvert-au-public (site consultado em 28 de abril de 2014).

[7]Ibid.

[8] Charlotte Oberti, « Manifestation en soutien de Gaza interdite à Paris : des dizaines d’interpellations », France 24, 19 de julho de 2014. http://www.france24.com/fr/20140719-live-direct-paris-manifestations-pro-palestiniens-gaza-interdiction-israel/ (site consultado em 1 de janeiro de 2015).


Articles by: Salim Lamrani

About the author:

Docteur ès Etudes Ibériques et Latino-américaines de l’Université Paris IV-Sorbonne, Salim Lamrani est Maître de conférences à l’Université de La Réunion, et journaliste, spécialiste des relations entre Cuba et les Etats-Unis. Son nouvel ouvrage s’intitule Fidel Castro, héros des déshérités, Paris, Editions Estrella, 2016. Préface d’Ignacio Ramonet. Contact : [email protected] ; [email protected] Page Facebook : https://www.facebook.com/SalimLamraniOfficiel

Disclaimer: The contents of this article are of sole responsibility of the author(s). The Centre for Research on Globalization will not be responsible for any inaccurate or incorrect statement in this article. The Centre of Research on Globalization grants permission to cross-post Global Research articles on community internet sites as long the source and copyright are acknowledged together with a hyperlink to the original Global Research article. For publication of Global Research articles in print or other forms including commercial internet sites, contact: [email protected]

www.globalresearch.ca contains copyrighted material the use of which has not always been specifically authorized by the copyright owner. We are making such material available to our readers under the provisions of "fair use" in an effort to advance a better understanding of political, economic and social issues. The material on this site is distributed without profit to those who have expressed a prior interest in receiving it for research and educational purposes. If you wish to use copyrighted material for purposes other than "fair use" you must request permission from the copyright owner.

For media inquiries: [email protected]